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A Argentina perdeu para a Alemanha e para a Maldição de Tilcara

Postado por: Henrique Rojas

1986, ano de Copa do Mundo no México. O mês era janeiro e o treinador Salvador Carlos Bilardo resolveu levar seus convocados até a pequena e mística cidade argentina de Tilcara para um período de treinamentos.

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Ar rarefeito, grama rarefeita.

A escolha pelo local parecia inusitada, mas era justificável: com 2.460 metros acima do nível do mar, Tilcara era uma das raras opções para simular a altitude que os albicelestes enfrentariam alguns meses depois.

É bom lembrar que o selecionado argentino havia sido campeão do mundo em 1978, mas ao que tudo indicava, a eliminação frente Brasil e Itália na segunda fase do mundial de 1982 parecia ter mexido com os brios e a confiança dos hermanos. Por isso, durante uma pausa nos treinos, o grupo de jogadores foi até a igreja local e prometeu à Virgen de Copacabana del Abra de Punta Corral que, caso conquistassem o bicampeonato, voltariam com a taça para agradecer.

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Pelo menos a nossa Virgem tem manto azul.

Pois a história nos conta que a Argentina não apenas levou o caneco pra casa, como o fez de maneira invicta (6 vitórias, 1 empate, 14 marcados) e com a mão, vejam só, de Diós. Logo, é bem possível que a tal Virgem de Corral fosse bem chegada do Todo Poderoso…

O problema é que a promessa jamais foi paga. Nenhum atleta, nem mesmo Bilardo e sua comissão técnica, regressaram a Tilcara para agradecer.

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La mano del diablo.

E desde então, a história também nos conta um sem número de fracassos dos nossos vizinhos em Copas – incluindo aí dois vice-campeonatos, um deles no último domingo, diante da Alemanha no Maracanã.

Reza a lenda que moradores locais já fizeram por mais de uma vez a campanha Vuelvan a Tilcara. Mas como nenhum funcionário da AFA parece interessado na história, a maldição continua. E nem o Papa parece capaz de curar.

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Vulven a Tilcara. O no.

Amém.

Os Caniggias

Postado por: Marcos Abrucio

Se o Brasil não ganhou TODAS as edições da Copa do Mundo, a culpa é deles. Dos algozes, dos carrascos, dos verdugos do Brasil. Dos Caniggias.

Para quem não lembra ou estava no maternal na época: Caniggia foi o cara que, com sua pose de vocalista do Poison, recebeu uma bola açucarada de Maradona, driblou Taffarel e defenestrou a seleção do Lazaroni em 1990:

Giggia, Paolo Rossi, Cruyff, Zidane (duas vezes) também nos entubaram em Copas do Mundo. Mas foram ótimos jogadores, dos maiores de todos os tempos. O fato de terem esmigalhado o Brasil foi apenas um de seus muitos feitos.

Já Claudio Caniggia, não. Quando se fala nele, a gente só se lembra daquela tarde em Turim. Do ponto final de uma das piores campanhas brasileiras de todos os tempos. (Tudo bem, vai. A gente também lembra dessa foto.)

Pois bem, quem foram nossos Caniggias? Pra começar, um dos nossos maiores executores, o…

1) Chuveirinho Assassino

Talvez você não tenha reparado, mas nas últimas três Copas que o Brasil perdeu (2010, 2006 e 1998), fomos derrubados por gols de bola parada.

Pausa para a sessão nostalgia-masoquista. 1998 e o “Quem é que sobe?!”:

2006 e o “Sai, Dida!”:

2010 e o “Fica, Júlio Cesar!”:

Dureza. Mas tão perigoso quanto a sanguinária bola aérea é o…

2) Já-ganhou dos Infernos

Claro que o Uruguai tinha um grande time. Mas o diabólico clima de “já-ganhou” criado nos dias que antecederam a final de 1950 foi determinante para a derrota brasileira.

Não por culpa dos jogadores, que fique claro. Um jornal carioca botou em letras garrafais, em cima da foto da seleção: “Eis os Campeões Mundiais” – ANTES do jogo. Políticos não saiam da concentração. Mendes de Morais, então prefeito do Rio, exigiu a vitória em discurso inflamado no Maracanã: “Eu cumpri minha palavra construindo esse estádio, cumpram agora seu dever vencendo a Copa do Mundo.

Com tanto peso nos ombros, não podia dar certo.

Claro que a Holanda de Cruyff era melhor que o Brasil em 1974. Se os dois times jogassem mais duzentas vezes, talvez empatássemos uma ou duas e olhe lá. Mas que o Brasil menosprezou aquele time, ah, menosprezou. Não é, Zagallo?

Além desses dois, também fomos vítimas de outro Caniggia: o…

3) Destino Vil e Cruel

Só o Destino Vil e Cruel explica o grande Leônidas da Silva, artilheiro e melhor jogador da Copa de 1938, tenha sido apenas o terceiro colocado no Mundial.

Diamonds are forever.

Diamonds are forever.

O Destino Vil e Cruel, esse fanfarrão, determinou que a geração de Zico, Sócrates e Falcão não levantasse o caneco ao menos uma vez. O DVC, esse dissimulado, ainda nos fez acreditar que o Galinho, ao perder aquele pênalti em 86, era o nosso algoz. Mentira. A culpa é do Destino, esse canalha. Canalha, vil e cruel.

Por outro lado, ora, ora, ora, quem também nos abateu em pleno voo foi o…

4) Destino Sábio e Misericordioso

Sim, ele também sabe o que faz. E acertadamente nos tirou de Copas que não merecíamos, de forma alguma, vencer. Como em 1930, 34, 54, 78 e 90.

Em 30 e 34, as federações cariocas e paulistas brigaram, impedindo craques como Arthur Friedenreich de embarcarem para a Copa. Perdemos logo de cara, bem feito para nós.

Em 54, apanhamos da Hungria na bola e partimos para o pau, em um dos episódios mais tristes das Copas, a Batalha de Berna. Feio, feio…

Para a Copa de 66, foram convocados 47 jogadores (!), entre eles dois Ditões (!!). O certo era o do Corinthians, mas chamaram por engano o do Flamengo. Para não ficar chato, deixaram os dois.  Na Argentina, em 78, Chicão foi convocado, Falcão não. Dá pra ser campeão assim?

Em 90, um time triste, com três zagueiros, três volantes – e ninguém marcando o Maradona. Quis o Destino, de forma sábia e misericordiosa, que não passássemos das oitavas. Não merecíamos mais do que isso. Mais do que o Caniggia argentino, foi a intervenção desse Caniggia onipotente que nos mandou de volta para casa mais cedo.

***

Que Caniggia pode nos derrubar agora? Difícil dizer antes da bola rolar. Os Caniggias são sorrateiros e aparecem de surpresa na área, sem marcação (né, Dunga, Alemão, Mozer, Ricardo Gomes, Mauro Galvão?).

Grandes adversários vão aparecer em nosso caminho. Mas por enquanto, meu maior temor é de um parente do Já-ganhou dos Infernos: o Terrível Não-Pode-Perder-Nem-Ferrando. O medo das consequências de uma derrota (vergonha mundial? Saques? Quebra-quebra?) pode pressionar nosso time a ponto de paralisá-lo.

Toc, toc, toc. Vira essa boca pra lá.

Por ora, importante mesmo é o que o vídeo abaixo comprova: a Copa finalmente chegou no Brasil!

 

Chutou, é fogo, é gol II – A pintura e a poesia

Postado por: Marcos Abrucio

Rio de Janeiro, 16 de julho de 1950. Depois do apito final, só se ouviu o silêncio.

200 mil brasileiros estavam em choque. E não muitos uruguaios estavam lá para comemorar: sem esperança do título, os dirigentes da celeste voltaram para casa antes do jogo. “Só ficaram o técnico, o preparador físico e três massagistas”, lembra Ghiggia, aquele que martelou o último prego no nosso caixão.

Depois daquele velório, o Brasil foi cinco vezes campeão do mundo, enquanto o futebol uruguaio mergulhou em uma longa decadência. Até hoje, procuram substitutos para Ghiggia, Varela, Máspoli…

Os heróis de 50. Ou vilões, né.

Os heróis de 50. Ou vilões, né.

Até os 15 anos, Victor Hugo Morales acreditava que poderia ser um desses caras. Treinava todos os dias para ser o próximo uruguaio a levantar a Copa. Mas então teve a revelação: era ruim demais para isso. Decidiu se tornar jornalista – esportivo, é claro.

Ele nunca imaginaria que essa decisão o faria participar de um dos maiores momentos da história das Copas. E que, nesse momento, ele não vestiria as cores do Uruguai, mas da rival da outra margem do Rio da Prata: a Argentina.

***

Colônia do Sacramento, 20 de abril de 1964. Com apenas 16 anos, Victor Hugo vai pedir emprego na Radio Colônia. Dois anos depois, já era, segundo ele, o locutor mais jovem das Américas.

Logo foi para Montevidéu, onde acumulou os cargos de narrador e diretor de esportes da Radio Oriental. No fim da década 70, sua oposição à ditadura uruguaia começou a lhe causar problemas. Pressionado pelos militares, mudou-se para a Argentina em 1981. Nunca mais voltou.

Na Copa de 1982, narrou para a TV argentina aquele Itália 3 x 2 Brasil, ugh. O jogo acabou e Victor Hugo olhou para a arquibancadas, onde os torcedores antes batucavam sem parar. Viu os brasileiros mais uma vez calados.

Foi uma das poucas vezes na carreira em que se sentiu completamente vulnerável. Começou a chorar imediatamente:

“Me partió el corazón el silencio de los espectadores brasileños. No entendían nada en la tribuna del estadio.”

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Nossa segunda morte.

Quatro anos depois, sua emoção seria ainda mais forte.

***

Cidade do México, 22 de junho de 1986. O locutor uruguaio-argentino estava tenso. Primeiro, porque tinha parado de fumar e sentia uma fome incontrolável. Estava 14 quilos mais gordo.

Mas o motivo principal era o jogo à sua frente: Argentina x Inglaterra, valendo uma vaga nas semifinais da Copa do México. Mentira: a partida valia muito mais do que isso.

(Um ótimo relato dela está aqui.)

Dentro de campo, argentinos e ingleses se estranhavam desde 1966, quando o pau quebrou em plena Copa do Mundo. Depois de pontapés e xingamentos dos dois lados, o argentino Rattín acabou expulso. Na saída, torceu a bandeira do Reino Unido pendurada no escanteio e se sentou no tapete da rainha. Os ingleses se saíram vencedores e passaram a chamar carinhosamente os rivais de “animais”.

Fora de campo, a encrenca foi mais séria. Em 1982, tropas argentinas tentaram recuperar o controle das Ilhas Malvinas, em uma manobra populista dos militares que governavam o país. No começo, a manobra deu certo, despertando o sentimento patriótico nos hermanos. Mas logo o poderio bélico inglês se impôs, e as Ilhas voltaram a se chamar Falklands, ao custo de quase mil mortos, em sua maioria argentinos.

De volta ao jogo, agora em definitivo. Victor Hugo começa a narrar. Primeiro tempo morno, 0 x 0. No segundo, ele vê Diego Armando Maradona reescrever a história, ops, História.

Aos 6 minutos, El Pibe vence uma disputa aérea com Peter Shilton e abre o placar. O estádio inteiro viu que foi com a mão. Bilhões de pessoas ao redor do mundo viram que foi com a mão. O juiz não. Tão incrível quanto isso é um cara de 1,65 cm conseguir subir mais que um goleiro um palmo mais alto do que ele…

Sai que é sua, Shilton!

Sai que é sua, Shilton!

Uma animosidade de 20 anos atravessada na garganta, uma guerra fresca na memória, um gol de mão recém-convertido. Tudo isso borbulhava na cabeça de todos.

Aí Maradona, em um equivalente futebolístico de um solo perfeito de guitarra, pegou a bola em seu campo, driblou meio time da Inglaterra e tocou para dentro. Ele não apenas fez o maior gol das Copas, mas redefiniu o conceito de golaço. O ritmo crescente dos dribles, a velocidade da corrida e a epifania final são até hoje o padrão com o qual qualquer gol de placa é comparado.

Mas Maradona não fez aquela obra-prima sozinho: Victor Hugo Morales ajudou a deixar aquele gol ainda mais bonito.

Sua narração daqueles segundos se tornou histórica – ironicamente, por narrar quase nada do lance. Ele simplesmente para de relatar o que estava acontecendo para se deixar levar por uma corrente de sentimentos. Grita, chora, faz de improviso uma poesia que resume perfeitamente um momento histórico complexo – e que emociona até hoje.

A maior narração de todos os tempos. Olho no lance:

– Ahí la tiene Maradona, lo marcan dos, pisa la pelota Maradona. Arranca por la derecha el genio del fútbol mundial. Puede tocar para Burruchaga… Siempre Maradona. Genio, genio, genio! Ta, ta, ta, ta, ta … Gooooooool gooooooool! Quiero llorar! Dios santo, viva el fútbol, golaaaazo! Diegoooool! Maradona! Es para llorar, perdónenme, Maradona en recorrida memorable, en la jugada de todos los tiempos, barrilete cósmico, de qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina? Argentina 2 – Inglaterra 0. Diegol, Diegol!, Diego Armando Maradona. Gracias, Dios. Por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2 – Inglaterra 0. 

***

Victor depois diria que era um dos poucos jornalistas que acreditava naquela seleção desde o começo. A explosão na hora do gol seria em parte causada pelo “prazer que dá ter razão”. Mas não foi só isso: ele percebeu na hora que algo gigantesco estava acontecendo – por isso cravou ao microfone: “a jogada de todos os tempos”.

Sem contar, claro, a mais linda das metáforas, ao chamar Maradona de “pipa cósmica” (!). Pipa por ter movimentos imprevisíveis, cósmico para dar ideia do tamanho daquela realização.

A poesia e a pintura.

A poesia e a pintura.

Em entrevista ao jornal “As”, Victor Hugo Morales admitiu ter passado anos sem assistir ao lance. O motivo?

“Era como se tivessem me filmado correndo bêbado e pelado pela rua. (A narração daquele gol) É um striptease espiritual.”

Depois mudou de ideia e fez a pazes com a narração: “quem sou eu para ficar alheio a algo que tanto me deu?”

Gracias.

Victor Hugo Morales.

Victor Hugo Morales.

***

Veja também: Chutou, é fogo, é gol I.

Por que a Copa?

Postado por: Marcos Abrucio

2010

Copa da África do Sul, 2010.

Há exatos quatro anos, o pessoal da Editora Cortez me pediu um texto sobre a Copa do Mundo. Para quem não conhece, a Cortez cresceu no meio acadêmico, principalmente entre as ciências sociais. O texto seria disparado para o mailing da editora — formado em sua maioria por professores, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos…

Ih, ferrou. De cara, estava descartada qualquer tentativa de explicação antropológica das Copas, sob o sério risco de passar vergonha. Nada que eu falasse seria novo ou revolucionário. E pô, é a Copa, nunca ouviram falar?

Inglaterra, 1966.

Copa da Inglaterra, 1966.

Resolvi simplemente falar porque eu gosto tanto desse campeonatinho mequetrefe — o que, no fundo, é o que venho fazendo aqui há tanto tempo.

Lembrei hoje daquele texto por dois motivos. O primeiro é o debate, necessário e importante, sobre a realização da Copa no Brasil. Sim, os escândalos, os superfaturamentos, as pataquadas e roubalheiras do trio FIFA-CBF-governos brasileiros são vergonhosos – embora algumas vergonhas não são assim tão sinceras

Sim, não era preciso ter gasto tanto dinheiro para fazer uma Copa aqui – e bem que ela podia ser um pouco mais brasileira. No fundo, nem era preciso fazer essa joça aqui. Tudo isso é verdade. Mas, ao mesmo tempo, essa joça é um dos eventos mais legais do planeta

O que me leva ao segundo motivo de ter lembrado daquele texto, que foi ter relido a magnífica frase de Mauro Cézar Pereira: O futebol é a maior invenção do homem.

Talvez não seja (já comeu doce de leite argentino?). Mas que tá no Top 5, ah, tá. Abaixo, reproduzo o o texto que mandei para a Cortez . Depois, eu volto para atualizar meu pensamento.

*** 

A detestável Copa do Mundo

Nas ruas de qualquer cidade do Brasil, um cenário pós-apocalíptico. O comércio está fechado, as calçadas vazias, e o trânsito evaporou — ei, até que a imagem não é assim tão ruim.

A sensação de abandono só não é completa porque, bem ao fundo, você ouve uma voz ritmada. E depois, um grito em uníssono de “Gol!”. Você descobre, enfim, que os brasileiros não foram vitimas de uma hecatombe nuclear. Estão todos em frente a TVs e telões, dentro de casas e bares, assistindo à estreia do Brasil na Copa do Mundo.

México, 1970.

Copa do México, 1970.

Os brasileiros não estão sozinhos. A audiência esperada para esta Copa ultrapassa em muitas vezes o número de habitantes da Terra. Isso quer dizer que praticamente todas as pessoas do planeta verão mais de um jogo do Mundial. Algumas, todos. Mas o que explica o sucesso de um evento tão detestável?

Sim, são muitos os motivos para a odiar a Copa do Mundo.

Enquanto ela não acaba, assuntos realmente importantes como as eleições, o combate à miséria, a educação, a saúde e o sentido da vida são deixados de lado. Ninguém dá bola para nada a não ser para… a bola.

A Copa cria um nacionalismo de fachada, que exige a vitória contra os estrangeiros sem se preocupar com uma real melhoria do pais.

As rivalidades atiçadas pela bola rotineiramente se transformam em violência, como mostram os hooligans ingleses, os barra bravas argentinos e os torcedores organizados brasileiros.

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Inglaterra, qualquer época.

O negócio do futebol bate cartão nas páginas policiais, com transações escusas, denúncias de corrupção e de lavagem de dinheiro. Até a camisa dos times e a bola do jogo teriam culpa no cartório — pelo suposto uso de trabalho infantil por parte das fabricantes de material esportivo.

E tudo isso é soterrado pelo rolo compressor do marketing que, meses antes do apito inicial, decreta que só ela, a Copa, importa. E que ela justifica tudo.

Ufa. Mas sabendo de tudo isso (você sabia, né?), por que ainda damos trela para a tal Copa?

A resposta está dentro de campo: no próprio futebol e em suas histórias.

Os gregos já incensavam a prática esportiva como forma de levar o corpo à sua plenitude, o que o conhecimento e a filosofia fazem pela mente. Com o passar do tempo, o esporte se mostrou muito mais do que isso.

Trata-se de um celeiro interminável de histórias fantásticas e de personagens que são admirados por suas façanhas sobre-humanas — ou apenas por sua humanidade. E talvez nenhum esporte tenha conseguido conquistar tanta gente e motivado tantas paixões como o futebol.

Não há certezas sobre as razões disso, apenas suposições. Há quem diga que o futebol é fascinante por ser uma metáfora perfeita da vida (ou da guerra) — e há quem concorde, mas justamente por ele não ser nada disso.

Para muitos, este é o esporte mais democrático de todos, em que baixinhos como Maradona e Romário, jogadores com as pernas tortas como Garrincha e de joelhos estropiados como Ronaldo podem vencer os maiores, os mais fortes e os mais saudáveis.

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O baixinho, 1986.

Em uma época em que em várias partes do mundo os negros não podiam nem dividir o banco de um ônibus com um branco, o futebol alçava à categoria de “rei” um negro, Pelé. O brasileiro se tornou um ídolo planetário, até de quem tomava os negros como cidadãos de segunda classe.

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O negão, 1973.

Em 1998, Irã e Estados Unidos se encontraram na Copa da França. Antes do jogo, os jogadores dos dois times trocaram flores e posaram juntos para a foto oficial. Fizeram o que os governantes dos dois países não conseguiram até hoje: conviver em paz.

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Copa da França, 1998.

Antes da reunificação de fato das Alemanhas, o povo alemão das duas bandas do muro comemorou junto a vitória ocidental na Copa de 90:

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Copa da Itália, 1990.

Mas não é preciso ir tão longe. Todo mundo que tem um time de coração já viu (e viveu) dezenas de histórias de superação, dezenas de vitórias e de derrotas que ensinaram valiosas lições.

O futebol tem o dom de se fazer a coisa mais importante do mundo e nos elevar às alturas da dor e do prazer. E, em seguida, de nos puxar de volta ao solo como se dissesse: “Calma, é só futebol. Importante é a vida”.

Golaços como os citados fazem o futebol ser tão apaixonante. E como a Copa do Mundo é o momento máximo desta paixão, nada mais natural do que pararmos e admirarmos cada um de seus lances. Apesar de tudo. Por causa de tudo. Agora, shhhhh, que o jogo vai começar.

***

Quatro anos depois, o contexto e o clima da Copa são diferentes. Perdemos a chance de usar o evento mais legal do mundo para deixar o país melhor. Perdemos a chance de mostrarmos o que temos de melhor para o mundo — e fizemos o contrário, escancarando os nossos piores defeitos para o mundo.

Por um lado, foi até bom: a Copa no Brasil catalisou um sentimento de indignação que parecia irremediavelmente adormecido. De unanimidade entre os brasileiros, a ela virou pretexto para protestarmos contra tudo que não concordamos.

Se uma coisa tem a ver com a outra ou não, é outra história. Eu realmente acredito que existe um caminho intermediário entre a empolgação acéfala com o Mundial e a demonização total de tudo que ele significa.  Mas isso é assunto para outro post. Amanhã escrevo.

Por hoje, achei pertinente relembrar essa velha defesa da abominável Copa do Mundo.

E se a Copa fosse no Brasil?

Postado por: Marcos Abrucio

A final vai ser aqui. Bem, mais ou menos aqui.

A final vai ser aqui. Bem, mais ou menos aqui.

Esse é o grande problema das datas: uma hora elas chegam. Já está entre nós 2014, o ano que há algum tempo é sinônimo em nossas cabeças de “Copa no Brasil! Copa no Brasil!”.

Desde pequeno ficava imaginando: como seria uma Copa do Mundo por aqui? Itália e Alemanha jogando no mesmo campo de Bangu x América. Os camelôs do Pacaembu vendendo camisetas de Argentina e Camarões. Um bandeirão abrindo no meio da torcida da Inglaterra…  Se o Mundial de 78 foi o do jeito argentino de jogar e torcer, com mais papel higiênico do que grama em campo, uma Copa no Brasil seria uma forma do mundo inteiro ver o jogo como a gente o vê.

A Seleção Alemã adentra o gramado do Maracanã.

A Seleção Alemã adentra o gramado do Maracanã.

Na Copa das Confederações do ano passado, tivemos uma boa amostra de como a “nossa” Copa vai ser, pelo menos dos portões para dentro: tudo no “padrão FIFA”, com o que isso tem de bom e de ruim.

Estádios novos (alguns já velhos), com visual moderno e conforto para o torcedor inédito por estas bandas (também, com as cadeiras e os estádios mais caros do mundo). Tudo muito organizado, limpo, bem sinalizado… e muito pouco brasileiro.

Ops.

Ops.

Já reparou que quando a câmera mostra o interior de qualquer uma dessas novas “arenas” (é, nem estádio chama mais), não dá para saber qual é? Do lado de fora, a arquitetura ainda é única, mas dentro é tudo no tal padrão: as cadeiras são iguais, a distância da torcida para o campo é igual, as dimensões do gramado são iguais, as redes são iguais, até o ângulo de câmera é sempre igual.

Não precisava ser assim. Poderíamos ter uma Copa do Mundo no Brasil que fosse… no Brasil.

Claro que os estádios estavam caindo aos pedaços. Que não dava mais para ser tratado como gado para entrar e sair da arquibancada. Mas era possível fazer reformas estruturais sem perder a nossa cara. Bastava ter pensado melhor em algumas questões:

• Por que em todo estádio o véu da noiva tem que chacoalhar da mesma forma?
A nova rede do Maracanã é igual à do Mané Garrincha que é igual à do Soccer City que é igual à de Yokohama… Por que não podemos ver uma semifinal de Copa do Mundo no Mineirão com seu filó do tamanho de um latifúndio? Ou no Maracanã com aquela rede que já acaba logo depois da linha? Melhor ainda: imagina um jogo decisivo na Fonte Nova com aquelas traves que pareciam de futebol de botão e a rede que quase arrastava no chão:

• Por que não posso comer um McPernil?
Ok, o McDonald’s tem acordo com a FIFA. Legal, vamos vender Big Mac. Mas sem proibir feijão tropeiro no Mineirão, acarajé em Salvador e sanduíche de pernil na porta do estádio em São Paulo (pensando bem, acho que esse a Vigilância Sanitária proibiria de qualquer jeito).

Número 2.

Número 2.

• Por que estádios, desculpe, arenas novinhas em Cuiabá, Manaus, Natal e Brasília, onde nenhum time consegue lotar um estádio, quanto mais uma arena?
Tudo bem, essa é fácil: muita politicagem e algum excesso de otimismo no turismo são a resposta. Mas prossigamos.

Em vez de Manaus, por que não jogar em Belém, onde o Mangueirão está sempre cheio para ver Remo e Paysandu? Em vez de Brasília e Cuiabá, por que não o Serra Dourada, que por décadas sempre foi conhecido como o único dos nossos campos com uma grama decente?

Serra Dourada e seu gramado psicodélico, 1981.

Serra Dourada e seu gramado psicodélico, 1981.

• A Copa tinha que ser no Itaquerão?
Temos que admitir: o Morumbi é um trambolho gigantesco. Tem milhares de pontos cegos, os assentos são distantes do campo, treme assustadoramente, é longe pra burro (desculpe se você mora ali perto, mas você mora longe pra burro) e muito feio esteticamente duvidoso.

Mas sua história também é gigantesca. Acostumamos a tê-lo de pano de fundo de jogos mitológicos. E vá lá: não é possível que uma reforminha bem feita não resolva boa parte dos seus problemas. Reforma que faria bem não só a ele e ao São Paulo, mas aos torcedores de todos os times.

E também à Copa do Mundo: imagine o Fred fazendo um golaço ali e correndo feliz para a galera, como tantas vezes o Careca e o Raí já fizeram. Imagine o Neymar fazendo algo parecido com isso.

Feio? Pensando bem, poucas coisas são tão bonitas como o Morumbi de casa cheia, com um mar de bandeiras como este:

A torcida alemã vibra no Morumbi.

A torcida alemã vibra no Morumbi.

• Mas só o Morumbi presta?
São Paulo já tinha o projeto de dois estádios novos, modernos, reluzentes, pimpões: o do Corinthians e o Palmeiras. Se eles ficassem prontos a tempo da Copa, ótimo. Seriam boas alternativas. Ou poderíamos ainda dar um tapa no Pacaembu, onde 40 mil pessoas estariam maravilhosamente acomodadas. Como sempre estiveram, aliás (lembrando que até jogo de Copa já rolou por ali).

Morumbi reformado, estádios novos, Pacaembu garibado. Na verdade, são todas boas opções. A escolha, então, deveria ser muito simples: a que custasse menos dinheiro público. É, então…

• E o Maraca, hein?
É, parece que do jeito que estava não dava mais. A estrutura estava podre e corria sério risco de cair. Nem vamos lembrar que outras duas reformas já tinham gastado rios de dinheiro nos últimos 15 anos – e que, pelo jeito, deram em nada.

Mas beleza: poderiam ter reformado de novo e mantido não só a fachada, mas também o layout interno, com seus anéis imponentes. E não deixá-lo com cara de uma arena genérica.

Veja bem: o Maracanã está lindo. Mesmo. Mas vale lembrar a impressão de Arbeloa, lateral da Espanha que foi judiado pelo Neymar na final da Copa das Confederações:

 “Quando estivemos no Maracanã, não tive a sensação de jogar em um estádio com tanta tradição. Você chega e vê um estádio moderno, novo, cheio de cores, então não é capaz de te transmitir a história. Tem vestiários confortáveis, modernos e amplos. Não é como quando vamos a Anfield, La Bombonera, ao Monumental de Nuñez, onde você sente o tempo, te transmite a história. Eu gostaria de jogar lá antes da reforma. Não fui capaz de sentir nem pensar que aqui atuaram jogadores tão importantes na história do futebol. Tive a mesma sensação quando joguei, por exemplo, nos estádios novos da África do Sul no Mundial ou os da última Eurocopa. Não parecia um estádio mítico do futebol.”

Disse tudo, cara.

Claro que não há mais espaço no futebol moderno para a geral do Maracanã, mas… peraí, será que não, mesmo? Na Alemanha os torcedores do Borussia tem um espaço para assistir aos jogos como sempre assistiram: em pé, urrando como doidos.

Mané e os geraldinos.

Mané e os geraldinos.

Talvez não desse para manter o fosso e os geraldinos quase sem visão, mas será que não dava para preservar o espírito do estádio, o mais democrático do mundo?

O povão dava o recado no Maraca.

O povão dava o recado no Maraca.

Será que não poderíamos ter a final da Copa em um estádio moderno e confortável, mas que carregasse as marcas da sua história? De perto, o Camp Nou é imponente, colossal, bem cuidado, mas não esconde que tem mais de 50 anos. O Maraca Nou poderia ser assim também.

Outra coisa: encurtaram o gramado! O Maracanã tinha um dos maiores campos do mundo, com espaço bastante para não deixar nenhuma retranca funcionar – o que sempre ajudou o nosso jeito de jogar.

• Resumindo:
Poderíamos consertar as infiltrações, melhorar a visibilidade da platéia, instalar um telão novo mas mantendo as dimensões do tapete – e deixando o palco de tantas histórias mais reconhecível.

Com cara de quem já viu vitórias e derrotas, comédias e tragédias. De quem já viu Pelé fazer o primeiro dos gols de placa e o milésimo dos gols de Rei. De quem viu Mané sorrir e dizer adeus. Já viu goleadas históricas e peladas perfeitamente esquecíveis. Viu Romário dar uma caneta em Maradona, viu Maradona acertar o travessão do meio do campo, viu Gaúcho pegar pênalti, viu Rivelino, Dinamite, ouviu o Frank. Viu Zico jogar.

Não é pouca coisa.

Gênios trabalhando no Maracanã.

Gênios trabalhando no Maracanã.

E, por fim,

• Pô, por que raios tiraram o orelhão de trás do gol do Maracanã?

Alô?

Cadê você?