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Neymar, burraldo

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Sempre fui fã do Neymar. Apesar dele ser marrento, mimado, mal-assessorado, ególatra. Só que, além disso tudo, ele é um gênio. Total. Joga muito, muito mesmo. Mas nessa Copa, pela primeira vez, peguei raiva dele. Não porque ele tenha ido tão mal (nem bem.) Mas porque ele foi burro.

Burro, burraldaço. E aí dá raiva.

Algo que eu não senti nem quando ele deu um chapéu no Chicão com o jogo parado. Ou quando deu um chapéu no Santos e disputou o Mundial de Clubes contra o Barcelona já contratado pelo… Barcelona. Ou quando deu um chapéu na Receita Federal. Ou quando deu um chapéu…

Não, nada. Cansei de defendê-lo em inúmeras situações. Porque ele é fera. No começo, havia o medo dele virar um Robinho, alguém que prometia ser um dos grandes mas no fim não era nada disso. Bobagem. Lembre-se de que Neymar já foi decisivo para os seus times em várias conquistas e ainda fez gols nas finais dos maiores desses títulos (Libertadores-2011 no Santos, Champions-2015 no Barcelona, Olimpíada-2016 na Seleção, por exemplo).

Por isso, nunca liguei para os seus penteados, suas tatuagens ou seus tuites. Pra falar a verdade, nunca me importei nem com a sua fama de cai-cai, piscinero ou diver (dependendo do país onde você está). Afinal, a cada jogo, ele apanha mais que o Rocky Balboa em todos os filmes da série. Apanha mais do que qualquer outro jogador no mundo. Se ele provoca, se chama a falta, aí é outra história. Mas apanha. Os caras pisam no pé dele, no tornozelo, dão cotovelada, o UFC todo. E aí ele desaba no chão e, em seguida, rola (e rola, e rola, e…). A hipérbole da sua reação era uma maneira de punir quem o surrava. Uma maneira de gritar: manhê, olha que o meu irmão mais velho fez!

Só que agora não precisava. E por não ter percebido isso, ele foi burro.

Neymar não sacou que, em uma Copa marcada pela vigilância do VAR e, paradoxalmente, por uma certa complacência à porrada (foram poucos amarelos, parecem que não queriam suspender ninguém), não adiantava nada ele rolar no chão daquele jeito. Quer dizer, só adiantou para melhorar nossos memes.

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Não precisava cair como se tivesse levado uma bala perdida. Tava todo mundo vendo. E o artifício, que antes poderia ser uma defesa, passou a ser prejudicial. Contra a Costa Rica, ele preferiu cavar um pênalti (que foi anulado) a continuar o lance. Contra a Bélgica, a mesma coisa. Nas oitavas de final, o cúmulo: sua reação exagerada impediu que o mexicano que pisou criminosamente no seu tornozelo fosse expulso. Neymar gritou e rolou – como ele sempre faz. Então não foi nada de mais, pensou o juiz e o mundo inteiro. Não, o cara tinha que ser expulso!

Nosso maior craque foi burro ao não ver como esse comportamento não fazia mais sentido. Um erro crasso de avaliação das circunstâncias.

Isso tudo prejudicou seu rendimento, o rendimento do time e a sua própria imagem. Neymar virou uma piada: o mundo inteiro o cita mais como mau ator do que como excepcional jogador de futebol. Uma grande burrice.

Claro que ser marrento, mimado, mal-assessorado, ególatra afunda ainda mais a situação. Quem está à sua volta o “protege” tanto que ele continua, aos 26 anos e pai há um tempão, sendo chamado de menino. Sempre foi assim, a começar pela presença onipresente do seu pai (Neymar, uma dica: seu parça Lewis Hamilton estourou de vez na F-1 quando o pai parou de o acompanhar em todas as corridas, negociar com os empresários, decidir tudo por ele. Depois disso, ele virou gente grande).

Nessa Copa, até o Tite, o Edu Gaspar e toda a comissão técnica, supostamente tão equilibrada e justa, colaboraram para passar a mão na cabeça (ora loira, ora não) do “menino”. Ele não dá entrevistas, não dá cara a tapa, não sabe nada dos seus contratos nem das suas declarações de renda. Vive numa bolha. A críticas são tão filtradas que viram apenas conspirações de quem tem inveja dele. Ei, Ney, críticas são também para ver se a pessoa melhora. Se você não as ouve, como vai melhorar?

Mas tudo isso eu sempre perdoei. Porque o cara é foda. Mas burrice, não.

Não existe craque burro.

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Postado por: Marcos Abrucio

Não quero nem saber

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— Pai, uma amiguinha da escola me deu umas figurinhas de uns homens

Olívia tem 3 anos e meio e, para meu alivio financeiro, ainda não conhece o álbum da Copa.

— Filha, são as figurinhas da Copa do Mundo!

— Eu não sei o que é a Copa do Mundo.

Oras, que espécie de pai sou eu? Como não apresento à minha filha o ápice da aventura humana na Terra? Mas essa é a minha deixa. A oportunidade perfeita para contar a ela o que faz desses próximos dias a época mais incrível de todas.

— Oli, a Copa é o campeonato de futebol mais legal do mundo, com times de muitos países jogand…

Ela me interrompe.

— Pai! Eu não quero saber o que é a Copa do Mundo.

Olívia tem 3 anos e meio e, para meu profundo desgosto, não quer nem saber o que é a Copa do Mundo.

***

Isso foi há algumas semanas, e ainda estou me recuperando do mini-infarto que sofri naquele dia. Pensei em deserdá-la, mas depois lembrei: ela não está sozinha. Pela primeira vez, a maioria dos brasileiros não tem interesse pela Copa. Pela primeira vez, eu sou minoria.

Bom, nos últimos quatro anos não faltaram motivos para isso. Ainda mais depois de 2014 — com tudo o que a Copa no Brasil teve de bom e de ruim. De bom: foi a Copa que a gente viu de perto, pô! Vivemos um mês respirando futebol o tempo todo, nas conversas, nas ruas, na mídia. E aí rolou uma overdose, claro. De ruim: levamos a maior de todas as traulitadas, tão grande que virou piada.

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Mas teve mais: de lá para cá o ex-manto da seleção virou o uniforme de uma facção política com uma ideia muito clara: derrubar quem estava no poder. O resultado — um país muito pior depois disso — faz com que as pessoas agora tenham vergonha de usar a camisa do Brasil até trancadas sozinhas no quarto.

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A torcida brasileira sempre foi mais exigente (= chata) do que apaixonada pela seleção. Só que agora o país está é de bode dessa coisa toda. Acho que depois do primeiro jogo, tudo isso muda. Em todo caso, vou me esforçar para fazer a minha parte.

***

— Filha, essa vai ser a sua primeira Copa! Não é legal? Na outra, você estava na barriga da mamãe.

— É?

— É, e você se comportou direitinho. A mamãe, com aquele barrigão, assistia a todos os jogos do meu lado no sofá. E dormia em todos…

Como se vê, Olívia puxou da mãe o apreço pelo futebol. Eu continuo:

— Só teve um jogo que foi complicado. Eu estava no estádio vendo o Brasil, a mamãe ficou em casa. O Brasil foi levando gols lá e ela aqui foi ficando sem ar, sem ar, parou até no hospital. Nada a ver com o jogo, ela não liga muito, acho que foi bronquite. Mas deu tudo certo. Com vocês duas, né, porque o Brasil, mesmo, levou sete.

Por sorte, Olívia não estava mais me ouvindo. Estava ocupada botando as bonecas para dormir no sofá.

***

A estreia da Olívia em Copas me lembrou de outras estreias. O primeiro jogo de Mundial que eu vi na TV: Brasil x Espanha em 86. Gol de Sócrates, eu pulando no sofá da casa minha avó, o juiz roubando os espanhóis num gol claro que só ele não viu:

Em 2002, a estreia do Brasil na Copa teve outra roubalheira a nosso favor. Viramos o jogo contra a Turquia num pênalti totalmente inventado: o juiz marcou uma falta no Luizão que nem existiu — e cujo lance foi fora da área.

Estreia do Brasil em 2006. Jogo contra a Croácia. Tínhamos uma seleção sensacional, com a maior quantidade de craques por metro quadrado em campo desde 1982. Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Adriano, Roberto Carlos. Cafu, Robinho (ok, nem todos eram craques). O time tinha ganho tudo (e ainda dado baile) no ano anterior. Quando chegaram na Alemanha, os jogadores estavam todos gordos e anestesiados. Era como se o país inteiro tivesse ficado sóbrio de uma hora para outra e os jogadores ainda estivessem bêbados. Um negócio assustador de se ver.

2014: a minha estreia in loco em jogos de Copas. Uruguai x Inglaterra no Itaquerão. Não teve preço a emoção de ver um jogo de Mundial na casa do meu time. Não teve preço pegar um trem pra ZL conversando com hooligans. Não teve preço saber que o mundo inteiro estava olhando para onde eu estava. Aliás, não teve preço mesmo: ganhei o ingresso da minha cunhada, à qual agradeço até hoje: valeu, Dani!

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***

Tite tem dois grandes desafios neste ano: o primeiro é recuperar a autoestima de uma equipe que levou 10 gols nos últimos dois jogos de Copa. Paradoxalmente, o outro é conter a euforia de uma equipe que, sob o seu comando, voltou a ganhar e a jogar bem. Boa sorte, professor.

Mas muito maior é o meu desafio: fazer a Olívia curtir a Copa. Ou pelo menos, curtir 1% do que eu curto. Já vai ser muito.

Posso me ver no próximo domingo, dia de Brasil x Suíça:

— Filha, vamos ver o jogo do Brasil?

— …

— Eu te pago um sorvete depois. De morango.

— Vamos!

Canarinho-Pistola

Postado por: Marcos Abrucio

Hipoteticamente escrevendo

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— Eu vou contar um caso hipotético, tá bom?

— Como assim?

— Não aconteceu de verdade. Com ninguém que eu conheça, muito menos comigo. Não tinha nem como acontecer comigo. Eu não tenho dificuldade nenhuma para mijar, você sabe…

— Eu sei?

— É, meia cervejinha depois do expediente e lá vou eu pro banheiro do bar. Pedra no rim não se cria comigo. Entrou, saiu. Então isso que eu vou contar é só hipotético, entendeu?

— Acho que sim.

— Aliás, isso que é ser escritor, né? Ficar escrevendo histórias hipotéticas. Enfim…

— Serjão, onde você tá querendo chegar?

— Eu quero contar uma história de um homem que está no banheiro, mas não consegue mijar, e eu preciso da sua ajuda.

— Ih, caralho. Tá louco?

— Espera, pô. Não fica pensando besteira. É que quem vai contar essa história é um jogador de futebol. Quer dizer, sou eu, mas fingindo que sou um jogador de futebol. Na primeira pessoa, manja?

— Sim, sim. Quer dizer, não. Sei lá.

— Se eu fosse contar essa história na terceira pessoa, seria assim: “Um jogador de futebol está trancado no banheiro há mais de meia hora, mas não consegue fazer xixi.”

— Ok.

— Mas como eu vou escrever na primeira pessoa, como se eu fosse o jogador, seria assim: “Estou trancado no banheiro há mais de meia hora, mas não consigo mijar.” E aí?

— Entendi, entendi.

— Então, agora eu preciso da sua ajuda.

— Não entendi.

— Para continuar essa história!

— Ah, tá. Mas por que você não continua?

— Porque eu não sei nada de futebol. E você passa o dia vendo mesa redonda. Queria tirar umas dúvidas com você…

— Claro! Por que você não falou antes?

— Eu juro que eu tô tentando, Rildo.

— Mas fala aí, como é que começa essa história?

— Pensei em começar assim:

Sempre ouvi dizer que o tempo é relativo. Agora, eu posso confirmar: os minutos passam mais rápido ou mais devagar dependendo do lado do banheiro em que você está — dentro ou fora.

— Sério?

— Uma bosta, né?

— Olha…

— Melhor começar já contando o que aconteceu. Quer dizer, o que hipoteticamente aconteceu:

Estou aqui há mais de meia hora, trancado em um banheiro depois do jogo, com um cara olhando para o meu pau, quando batem na porta:

 “Porra, é tão difícil assim dar uma mijada?”, gritam lá de fora.

Porra, claro que é. Ainda mais com um cara do meu lado, vendo se o mijo que vai para o vidrinho é meu, mesmo.

“Espera, mano”, eu respondo.

Não era para isso estar acontecendo. Não depois de fazer três gols no mesmo jogo. Caramba, meu filho tava na arquibancada, ele tá me esperando lá fora. Ele vai falar a semana inteira que o pai dele é um cracaço, vai encher o saco da mãe até estourar.

Olhei para o homem ao meu lado. Prancheta na mão, óculos, avental. Um cientista analisando meu aparelho urinário. Sorri para ele, ele não sorriu de volta. Entrei em desespero — e minha uretra fechou-se mais ainda.

— E depois?

— Depois nada. Só escrevi isso.

— Só isso?

— Só.

— Eita.

— Tá ruim, Rildo? Muito ruim?

— Não, tá ótimo! Mas é só um começo, né. E tem umas coisinhas…

— Fala, pode falar.

— Primeiro: pode escrever essas coisas de pau, porra, mijada?

— Pode, o texto fica até melhor, mais real. Mais cortante.

— Ah, do caralho. Outra coisa: esse cara, como ele chama?

— Ainda não botei.

— Mas ele tem que ter nome, né? Qual o nome dele?

— É… Roberto.

— Roberto. O Roberto é jogador de futebol, não é?

— É.

— Então ele está acostumado a fazer antidoping. Depois de cada jogo, pelo menos um cara de cada time é sorteado.

— É?

— É.

— Mais cedo ou mais tarde, todo jogador vai para o antidoping. Então por que o Roberto tá assim, com o pau na mão, sem conseguir mijar?

— Hum.

— Se ele tá assim, é porque tem culpa. Sabe que vai pego.

— Porra, Rildo!

— O quê?

— É isso! É a grande revelação: o nosso herói, o craque que reconquista o amor do filho com dois golaços é, na verdade, um golpista inescrupuloso. Tá-daaammm!

Solto o vidrinho vazio e pego o homem de avental pelo colarinho. Tiro uma faca do calção e encosto na jugular dele:

“Você que vai mijar aqui.” 

“Eu? Mas…”

“Vai mijar e vai dizer que o seu mijo é meu. E não vai contar que isso aqui aconteceu, ou eu acho você onde você for e te enforco. O PCC tá comigo, entendeu?”

— Sei não.

— COMO NÃO?

— Calma, cara.

— Desculpa.

— Segura o facho.

— Já pedi desculpa. Mas qual o problema? Você é um gênio, deu a virada que eu precisava para a história…

— Ah, não sei. PCC?

— Tá, eu posso tirar o PCC.

— Não sei se as pessoas querem ler isso. Já veem as manchetes dos jornais todo dia. Vão querer mais violência nos livros?

— Hum.

— E outra, o cara é mauzão, asquerozão, maníaco do antidoping? Não sei se existe alguém assim.

— É uma história hipotética, eu disse…

— Eu sei, mas os leitores querem histórias mais profundas, complexas, contraditórias.

— É… boa, boa!

Seguro o vidrinho vazio, olho para o homem de avental. 

“Só mais um pouquinho, eu vou conseguir”, respondo para a voz que esmurra a porta. 

Eu não devia ter acreditado naqueles caras da federação. Mas eu precisava da grana: quatro meses sem pagar a pensão da Elaine e do Robertinho, prestes a ser preso. E os caras do campeonato precisavam dos meus gols. Sabiam que eu estava fora de forma, com problema de bebida. Para voltar a jogar, só com remédio para emagrecer. E me prometeram que eu nunca seria sorteado no antidoping. Alguém deve ter descoberto. Agora estou a alguns mililitros da ruína. 

— Melhor.

— Muito melhor, Rildo! Você é bom nisso. Vou botar seu nome na dedicatória do meu livro. E vai vender pra caralho! “A história de Roberto”, o herói brasileiro, craque de bola, profundo, complexo.

— Contraditório…

— Contraditório. Pô, vou vender os direitos para a Globo. Cauã Raymond no papel de Roberto. Mariana Ximenes no papel de Elaine, delícia.

— Mas espera. E como termina essa história?

— Hum.

— É importante, né. O final.

— Ah, é. É sim.

— E?

— Não sei. Você que entende de futebol, como poderia acabar essa parada?

— Bom, tem jogador dopado que injeta o mijo de outro jogador limpo, para não ser pego no antidoping.

— Legal, hein?

— O Roberto podia ter uma seringa escondida no calção. Quando o representante da comissão antidopagem…

— Quem?

— O cara que tá junto com ele!

— Ah.

— Quando o representante da comissão antidopagem tivesse um momento de distração, ele fincaria a agulha na bexiga e faria a transfusão de mijos.

— Eita, Rildo. Só de ouvir me deu aflição. Não gosto de agulhas.

— Aí fica difícil.

— Mas você tem razão. O escritor tem que sair da zona de conforto. Escrever sobre aquilo que não é familiar para ele. Vou botar a seringa… A não ser que fosse assim:

Vejo que o representante da comissão antidopagem têm um momento de distração. Então aponto o pau pra ele e mijo no seu avental.   

“O que é isso?”, ele grita.

“O que está acontecendo aí?”, diz o chefe dele, do lado de fora da porta.

Estico o vidrinho e o encho com as gotas que pingam do avental.

“Toma o meu mijo.”

Agora eles poderiam fazer o exame que quisessem. A amostra estava contaminada, eu diria no tribunal. Quimicamente comprometida. Saio do banheiro como quem sai de uma batalha, ainda ouvindo a torcida gritar o meu nome.

— Serjão…

— O quê?

— Essa história de você virar escritor…

— Sim.

— Ela é hipotética, né?

Postado por: Marcos Abrucio

As marcas da corrente

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Não era fácil encontrar traços de humanidade naquele tempo, mas eles ainda existiam.

Vivíamos nos túneis do metrô havia algumas semanas. Por segurança, andávamos o dia inteiro. Os mais fortes na frente, com lanternas e lampiões, depois os pais e mães com as crianças e, lá atrás, os mais velhos e eu — por causa da minha perna. Às vezes o grupo chegava em uma passagem bloqueada por um desabamento. Aí os líderes voltavam, em busca de outro caminho, e nós do fundo nem tínhamos tempo de tomar fôlego antes de mudar de direção. Quando os relógios de pulso diziam que era noite, a gente se sentava nos trilhos e tentava descansar, ignorando o barulho das explosões da superfície. A comida era racionada, e homens e ratazanas estavam sempre tentando roubá-la.

Em uma dessas noites, a moça dos mantimentos se aproximou de mim. Eu massageava a perna boa, sobrecarregada pelo esforço de arrastar a outra. A garota trouxe as quatro bolachas a que eu tinha direito e um pouco de água num copo sujo. Depois, tirou do bolso de trás da calça um velho tablet.

— Você era corintiano, né?, ela perguntou.

Era. Ela então deu play na tela, e começamos a ver juntos a final do Mundial de 2012. Corinthians e Chelsea em Yokohama. Gol do Guerrero no segundo tempo. Fomos campeões do mundo. A moça me deu de presente esse momento de novo.

Assistir a jogos de muitos anos atrás em computadores e celulares recondicionados que passavam de mão em mão era uma espécie de droga para a gente. Uma dose de prazer e entorpecência de 90 minutos mais os acréscimos — com sorte, conseguíamos VTs de partidas com prorrogação e disputa de pênaltis, e era sensacional.

As pessoas se aglomeravam para ver conquistas históricas dos seus antigos clubes, mas não só. O teipe de uma partida sem importância do Campeonato Paulista bastava para um pouco de alegria. Espiávamos até as vitórias dos adversários, mesmo em cima dos nossos times. O segredo era fingir que você não se lembrava do resultado e torcer como da primeira vez.

O vídeo acabava com os jogadores do Corinthians de 2012 dando a volta olímpica. A garota se levantou. Eu agradeci. Até melhorou minha perna, eu disse. Ela se afastou sorrindo. Ao meu lado, ouço uma voz enferrujada:

— Eu estava lá.

O velho não tinha um braço, mas era forte feito um marinheiro aposentado. Havia se juntado ao grupo alguns dias antes. Ficava afastado — e quase nunca se ouvia ele falar. Como seu rosto era irritantemente familiar, muitas vezes eu ficava olhando para ele por mais tempo do que o recomendado. Então eu disfarçava. Quem era ele? Não conhecia ninguém sem braço. Meu cérebro fazia força para responder, mas as sinapses pareciam interrompidas como os túneis pelos quais a gente perambulava. Agora, pela primeira vez, ele lançava uma pista para mim.

— Você foi até o Japão ver o Mundial?, perguntei.

— Eu fui até o inferno pra ver o Corinthians.

Eu não. Desde os quinze anos eu não via um jogo no estádio. Meu pai tinha me proibido, depois que eu me meti em uma briga feia de torcida. Quis continuar o papo com o velho, mas ele já tinha deitado no espaço entre os trilhos, de lado, a cabeça encostada no chão, sem o apoio do braço direito.

No dia seguinte, encontramos um vagão abandonado e montamos acampamento. Perto dali, em uma ramificação sem saída do túnel, havia uma torneira. Depois de algumas marretadas, ela voltou a girar. Aproveitamos para encher algumas garrafas e, depois de muito tempo, tomar banho.

Eu tinha conseguido um vídeo incompleto, mas de boa qualidade, de um Corinthians x Guarani de 1993. 5 a 1 para a gente, gols de Paulo Sérgio, Adil, Viola (2) e Neto. Procurei o homem sem braço. Ele se trocava depois de lavar o corpo. De calça e sem camisa, exibia mais de uma dezena de tatuagens, quase todas sobre o nosso time. Uma delas era igual a de milhares de outros corintianos: um gavião pedindo silêncio com o polegar erguido. Já outra, um relógio de ponteiros bem no centro do peito, eu só tinha visto uma vez na vida. E foi ela que me contou de onde eu conhecia o velho.

Quase trinta anos antes, eu ia ao Pacaembu toda semana, sempre no meio das torcidas organizadas. Era dos mais novos, e me sentia protegido pelos brutamontes que lideravam os pelotões de preto e branco pelas ruas. Eles sabiam que eu não podia correr, então davam um jeito de cuidar de mim. Roubávamos lojas de conveniência de postos de gasolina, e os caras não arredavam pé enquanto eu não conseguisse pegar algo da prateleira.

A gente se encontrava em uma estação de metrô, na Marechal Deodoro ou na Clínicas, e ia a pé para o estádio. Em um dia de jogo contra o Palmeiras, eu estava com outros moleques passando por cima de um viaduto do centro — um que, mais tarde, foi demolido pelos tanques de guerra. Os mais velhos estavam mais à frente. Lá embaixo, um grupo de torcedores rivais bebia cerveja. A ideia foi minha: subimos no parapeito e mijamos nos caras. Eles ficaram loucos, e chamaram os líderes das hordas de verde e branco. Antes que pudéssemos pensar em algo, os brutamontes deles já tinham subido o viaduto.

Meus amigos saíram correndo. Eu fiquei para trás. Tentei alcançá-los e acabei tropeçando. Acho que torci o tornozelo da outra perna. Os palmeirenses tinham me visto mijando e pularam em cima de mim. Obviamente eu teria morrido se um corintiano, com um relógio tatuado no peito, não tivesse voltado para enfrentar sozinho uma dúzia de adversários. Na mão direita, uma corrente de ferro girando sem parar arrancava dentes e olhos de quem estivesse pela frente.

Fabião. Fabião era o nome dele. Algum tempo antes desse dia, lembro de perguntar para ele na arquibancada, quando todos tirávamos a camisa para girar no ar — exatamente como ele fazia agora com a corrente de ferro —, por que ele tinha tatuado um relógio no peito.

— Para não esquecer a hora de voltar para casa, ele respondeu, rindo. Depois, tirou da carteira a foto da mulher e do filho pequeno. Então completou: se deixar, eu fico aqui até de madrugada.

— Some daqui, moleque!, ele gritou pra mim no dia da briga no viaduto.

Me arrastei para fora do bolo. Alguns dos nossos chegavam para ajudar. Tirei a camisa do Corinthians e botei na bermuda. Um minuto depois, olhei para trás. Fabião continuava rodando sua corrente, até um reforço de palmeirenses aparecer e imobilizar o braço direito dele. Um desses homens ergueu um facão de meio metro de comprimento. Não quis mais ver. Me escondi no banheiro de um supermercado.

Eu segurava o celular enferrujado com o VT do jogo de 93 e olhava para o velho sem braço. Fabião. Ele vestiu a camiseta de lã preta e rasgada e tapou o relógio do peito. Percebeu que eu estava estático à sua frente, mas não deu tempo de falarmos nada. A moça dos mantimentos gritou do vagão: tinham roubado parte da nossa comida. Estavam faltando 12 pacotes de bolachas.

Não dormi naquela noite. Primeiro os mais fortes nos obrigaram a ficar enfileirados, em pé sobre os trilhos, enquanto reviravam nossas coisas atrás da comida. Não acharam nada. Depois, voltamos aos nossos lugares e agarramos tudo que tínhamos, com medo de novos ataques. Aos poucos, todos foram silenciando. Assisti, sem som, aos gols do Paulo Sérgio, Adil, Viola (2) e Neto. Até alguém gritar de novo.

Acharam o corpo de um dos líderes com o pescoço esmagado, o rosto todo roxo. Um casaco dele estava jogado no chão; dentro, uma bolsa de pano com os nossos pacotes de bolacha. Olhei em volta, procurando o Fabião. Nem ele, nem os trapos dele estavam mais por perto. Um bolo de pessoas cercava o homem esganado. Passei por elas, me agachei e cheguei bem perto da cabeça. No pescoço, marcas de corrente.

Naquele tempo, até os traços de humanidade tinham traços de selvageria.

Postado por: Marcos Abrucio

 

Tutto tem su pressio

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Não é preciso ser jogador de futebol para saber como é passar a noite encarcerado em uma concentração. Presidiários, faroleiros e tripulantes de missões espaciais também conhecem a força medonha que faz você não aguentar mais a cara de quem está ao seu lado. Que faz você chutar longe livros, DVDs, laptops e Playstations. Que faz você sair andando pelos corredores vigiados de um hotel cafona em busca de uma nesguinha de liberdade. Em uma dessas noites — a mais importante delas —, eu descobri porque o Naldo e o Robson, atacantes titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo, queriam se matar. Digo, um matar o outro. Ah, vocês entenderam.

***

A treta entre os dois era manchete há um bom tempo. Voltei ao meu quarto, peguei o laptop caído no chão e, sem acordar o Fabinho, meu companheiro de cela, trombei com algumas:

“Naldo e Robson trocam socos em bar no Rio” (O Globo);

“Naldo jura Robson de morte” (Extra);

“Magia Negra: Robson é visto fazendo despacho para Naldo” (Meia Hora);

“Mesmo com briga, dupla ‘Naldobson’ é aprovada por 58,2% dos paulistanos” (Folha);

“Discussões como a de Naldo e Robson podem ser positivas, aponta estudo” (Estadão);

“Batalha de maria-chuteiras: quem tem as melhores ‘affairs’, Naldo ou Robson?” (UOL).

Parece que a história começou quando eram juvenis do Flamengo. Parceiros em campo, amigos fora. Então discutiram em um treino, o pessoal apartou, mas no vestiário a porrada correu solta. Naldo foi vendido para o Barcelona, Robson para o Real Madrid. Até hoje, a cada jogo entre eles, um novo ‘round’. Os dois, somados, já foram expulsos 17 vezes — sempre por discussões ou entradas violentas que um aplica no outro.

O Fabinho, como sempre, roncava como um motor de camburão a 90 centímetros de mim. Eu continuei googlando, sem me importar com o horário. E daí que amanhã é a final da Copa do Mundo? Eu não vou jogar, mesmo. Sou apenas um zagueiro reserva-do-reserva que fez um campeonato catarinense razoável pelo Joinville e que só foi convocado, às pressas, porque uma sequência absurda de contusões fez com que cinco outros zagueiros fossem cortados. É como se eu estivesse aqui de férias. Um turista em uma cadeia cinco estrelas.

Naldo e o Robson aumentavam a temperatura da briga a cada declaração à imprensa. “É um lixo humano”, dizia um sobre o outro, “Não merece viver”, dizia o outro sobre o um. Apesar do comportamento deplorável, reprovado até pela FIFA, os dois foram convocados para jogarem juntos no ataque da seleção. Por quê? Porque em campo os dois são geniais. Se um faz um gol, o outro se mata para fazer dois ou três. Sem trocar nenhum passe entre si, mas arrebentando em todos os jogos, eles levaram o Brasil até a final. Por isso o pessoal releva essa discussão infinita nos jornais. Por isso eles podem tudo, até terem quartos individuais na concentração — mas isso os jornais não sabem.

Ouvi passos chegando no quarto. Deve ser o segurança, pensei. Era o seu Matias, nosso técnico. Achei que ele ia dividir com a gente mais uma palavra de autoajuda puxada de um livro oriental de guerra. Alguma mensagem especial na véspera do “jogo das nossas vidas”. Ia acordar o Fabinho, mas ele só falou:

— Fica quieto, ouviu? Amanhã a sua hora vai chegar.

E foi embora.

***

Claro que não dormi depois disso. O grupo da seleção (e os torcedores e o Brasil inteiro) estavam divididos entre os simpatizantes do Naldo e os do Robson. No café da manhã, o “Team Naldo” ocupava as mesas perto da cozinha, o “Team Robson” ficava ao lado da janela. Eu, que chegara por último e era o único que não jogava na Europa, não pertencia a “team” nenhum.

Vi o Naldo entrando na fila dos ovos mexidos com o semblante fechado. Queria dizer para ele se não se preocupar. Não sou X-9, não, eu diria. No xadrez, a pior coisa que existe é acharem que você é cagueta. Aqui no Four Seasons Golden Palace, deve ser a mesma coisa. Fui atrás dele. Quando ia encostar em seu braço, seu Matias apareceu na frente e não me deixou passar. Porra, ele era melhor do que eu na marcação. Naldo voltou para a mesa. Virei para o outro lado: Robson levantava-se e saía pela porta de ferro do refeitório, com cara de prisão de ventre. Eu tinha lido que ele é amigo de uns traficas. Tô fudido.

No caminho para o ônibus que nos levaria para o estádio, o Fabinho cochichou no meu ouvido. Não entendi nada. Ele jogava na Itália há anos, mas não tinha aprendido direito o italiano — e ainda havia esquecido o português. Sem contar a língua presa. Enfim, seu idioma particular era um desafio para os melhores fonoaudiólogos. Pedi para ele repetir.

— Tutto tem su pressio. Tu vai recebere seu valore.

O Fabinho sabia de tudo! Mas fiquei confuso. Aquilo que ele falou foi o quê, uma ameaça? Sentei em uma poltrona no meio do ônibus, entre o fundão do Naldo e a frente dos parças do Robson. Revivi na minha mente a noite anterior.

***

Lembrei que eu estava sem saco para mais uma partida de videogame. Liguei no SexyHot mas nem uma punhetinha me animava. Sem chance de dormir, com o Fabinho trovejando na outra cama. Abri a porta, vi dois seguranças conversando de um lado. Do outro, caminho livre. Fluf, fluf, fluf, minhas pantufas deslizaram pelo carpete fofo do corredor. Cheguei à saída de emergência. Eram dois andares fechados para a seleção, com seguranças em cada porta, mas naquela hora um deles tinha abandonado o posto e atravessado o andar para trocar alguma ideia com seu parceiro. Consegui sair para a escada de incêndio que circundava o prédio em estilo neoclássico. A noite linda, estrelada. Ninguém por perto. Até os jornalistas que acampavam lá embaixo dormiam. O ar fresco bateu de leve nos meus pulmões como há muito tempo não acontecia. Desde que nos prenderam nesse lugar. Um barulho interrompeu minha paz: blam! O segurança estava voltando. Para despistar, dei a volta no edifício por fora e entrei pela porta corta-fogo do outro lado do andar. Mais ruídos: o outro segurança devia estar ajudando o primeiro a me procurar. Apareci no corredor deserto. Qual é o meu quarto? Todas as portas são iguais. Deve ser essa. Entrei e vi. Eles viram que eu vi. Fugi.

Depois, no ônibus, não sabia mais se ia para a final da Copa do Mundo ou para a minha execução. Tutto tem su pressio.

***

Como toda final de Copa, foi um jogo truncado, feio, nervoso. Nosso time não repetia as partidas anteriores, vencidas todas com goleadas. A diferença estava em Naldo e Robson, que pareciam perdidos no meio da zaga adversária.

Depois de mais uma bola que a dupla de ataque perdeu, o Sálvio, goleiro reserva, aproximou da minha orelha a mão coberta por uma enorme luva e explicou porque deveria acabar com a minha raça:

— Você estragou tudo!

Mais um que sabia. Seu Matias o afastou, dizendo que tudo daria certo, ele ia ver. O jogo estava chegando ao fim, continuava 0 a 0, e eu não tinha a menor ideia de como tudo poderia dar certo.

Então Robson entrou na área marcado por três adversários, ergueu a cabeça e, pela primeira vez no Mundial, passou a bola para Naldo. Ele dominou, ia chutar para o gol quando um zagueiro o derrubou por trás. Pênalti!

Pulamos todos ao mesmo tempo do banco, como se estivéssemos em assentos ejetores de caças supersônicos. Vamos ser campeões! O goleiro reserva até me abraçou. Só algo nos incomodava: Naldo continuava caído. Não parecia ser para tanto. Uma faltinha normal. Mas ele se contorcia e rolava de um lado para outro. O técnico me chamou. Rápido! Fui até ele, que disse baixinho:

— Sua hora chegou. Entra lá e aproveita.

Tentei argumentar: eu sou zagueiro, vou entrar no lugar do 9? Mas o velho não me ouviu. Naldo saiu de maca e passou perto de mim, olhando fundo nos meus olhos, transmitindo algum recado que eu não conseguia decodificar. Entrei em campo e Robson entregou a bola para mim. Ok. Entendi tudo.

Eu, zagueiro reserva-do-reserva, atleta do modesto Joinville, convocado na última hora depois de uma onda de contusões varrer todos os zagueiros do Brasil, iria bater um pênalti decisivo na final da Copa. Para me consagrar. Para virar ídolo, ser comprado por um time da Europa, ganhar milhões. Esse era o preço do meu silêncio. Um prêmio adiantado que estavam me pagando para eu nunca abrir a boca. Para eu não contar para ninguém que entrei num quarto da concentração e vi Naldo e Robson, os maiores arqui-inimigos do futebol mundial, dormindo de conchinha como antigos amantes.

Agora estava tudo claro. Botei a bola no chão.

***

E, como vocês sabem, chutei pra fora.

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Postado por: Marcos Abrucio