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Não quero nem saber

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— Pai, uma amiguinha da escola me deu umas figurinhas de uns homens

Olívia tem 3 anos e meio e, para meu alivio financeiro, ainda não conhece o álbum da Copa.

— Filha, são as figurinhas da Copa do Mundo!

— Eu não sei o que é a Copa do Mundo.

Oras, que espécie de pai sou eu? Como não apresento à minha filha o ápice da aventura humana na Terra? Mas essa é a minha deixa. A oportunidade perfeita para contar a ela o que faz desses próximos dias a época mais incrível de todas.

— Oli, a Copa é o campeonato de futebol mais legal do mundo, com times de muitos países jogand…

Ela me interrompe.

— Pai! Eu não quero saber o que é a Copa do Mundo.

Olívia tem 3 anos e meio e, para meu profundo desgosto, não quer nem saber o que é a Copa do Mundo.

***

Isso foi há algumas semanas, e ainda estou me recuperando do mini-infarto que sofri naquele dia. Pensei em deserdá-la, mas depois lembrei: ela não está sozinha. Pela primeira vez, a maioria dos brasileiros não tem interesse pela Copa. Pela primeira vez, eu sou minoria.

Bom, nos últimos quatro anos não faltaram motivos para isso. Ainda mais depois de 2014 — com tudo o que a Copa no Brasil teve de bom e de ruim. De bom: foi a Copa que a gente viu de perto, pô! Vivemos um mês respirando futebol o tempo todo, nas conversas, nas ruas, na mídia. E aí rolou uma overdose, claro. De ruim: levamos a maior de todas as traulitadas, tão grande que virou piada.

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Mas teve mais: de lá para cá o ex-manto da seleção virou o uniforme de uma facção política com uma ideia muito clara: derrubar quem estava no poder. O resultado — um país muito pior depois disso — faz com que as pessoas agora tenham vergonha de usar a camisa do Brasil até trancadas sozinhas no quarto.

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A torcida brasileira sempre foi mais exigente (= chata) do que apaixonada pela seleção. Só que agora o país está é de bode dessa coisa toda. Acho que depois do primeiro jogo, tudo isso muda. Em todo caso, vou me esforçar para fazer a minha parte.

***

— Filha, essa vai ser a sua primeira Copa! Não é legal? Na outra, você estava na barriga da mamãe.

— É?

— É, e você se comportou direitinho. A mamãe, com aquele barrigão, assistia a todos os jogos do meu lado no sofá. E dormia em todos…

Como se vê, Olívia puxou da mãe o apreço pelo futebol. Eu continuo:

— Só teve um jogo que foi complicado. Eu estava no estádio vendo o Brasil, a mamãe ficou em casa. O Brasil foi levando gols lá e ela aqui foi ficando sem ar, sem ar, parou até no hospital. Nada a ver com o jogo, ela não liga muito, acho que foi bronquite. Mas deu tudo certo. Com vocês duas, né, porque o Brasil, mesmo, levou sete.

Por sorte, Olívia não estava mais me ouvindo. Estava ocupada botando as bonecas para dormir no sofá.

***

A estreia da Olívia em Copas me lembrou de outras estreias. O primeiro jogo de Mundial que eu vi na TV: Brasil x Espanha em 86. Gol de Sócrates, eu pulando no sofá da casa minha avó, o juiz roubando os espanhóis num gol claro que só ele não viu:

Em 2002, a estreia do Brasil na Copa teve outra roubalheira a nosso favor. Viramos o jogo contra a Turquia num pênalti totalmente inventado: o juiz marcou uma falta no Luizão que nem existiu — e cujo lance foi fora da área.

Estreia do Brasil em 2006. Jogo contra a Croácia. Tínhamos uma seleção sensacional, com a maior quantidade de craques por metro quadrado em campo desde 1982. Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Adriano, Roberto Carlos. Cafu, Robinho (ok, nem todos eram craques). O time tinha ganho tudo (e ainda dado baile) no ano anterior. Quando chegaram na Alemanha, os jogadores estavam todos gordos e anestesiados. Era como se o país inteiro tivesse ficado sóbrio de uma hora para outra e os jogadores ainda estivessem bêbados. Um negócio assustador de se ver.

2014: a minha estreia in loco em jogos de Copas. Uruguai x Inglaterra no Itaquerão. Não teve preço a emoção de ver um jogo de Mundial na casa do meu time. Não teve preço pegar um trem pra ZL conversando com hooligans. Não teve preço saber que o mundo inteiro estava olhando para onde eu estava. Aliás, não teve preço mesmo: ganhei o ingresso da minha cunhada, à qual agradeço até hoje: valeu, Dani!

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***

Tite tem dois grandes desafios neste ano: o primeiro é recuperar a autoestima de uma equipe que levou 10 gols nos últimos dois jogos de Copa. Paradoxalmente, o outro é conter a euforia de uma equipe que, sob o seu comando, voltou a ganhar e a jogar bem. Boa sorte, professor.

Mas muito maior é o meu desafio: fazer a Olívia curtir a Copa. Ou pelo menos, curtir 1% do que eu curto. Já vai ser muito.

Posso me ver no próximo domingo, dia de Brasil x Suíça:

— Filha, vamos ver o jogo do Brasil?

— …

— Eu te pago um sorvete depois. De morango.

— Vamos!

Canarinho-Pistola

Postado por: Marcos Abrucio

Homem a homem

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JOHN BROWN, narrador escocês: Desculpe, eu não costumo ser assim tão piegas. Mas não há dúvidas, senhoras e senhores, de que nesta noite assistimos à História sendo escrita bem na nossa frente — uma pena que com tintas tão tristes.

Este jogo, que valia uma vaga para a repescagem das eliminatórias da Copa do Mundo, passou a significar muito mais para todos os que participaram dele. Alan Rough e Davie Cooper, por exemplo. Acabo de vê-los subindo no ônibus do time. Jock Stein colocou esses dois em campo no segundo tempo e, com muita coragem e nenhum pingo de hesitação, eles acabaram salvando a nossa pele. Tinham agora que estar cantando, bebendo, celebrando o belíssimo jogo que fizeram. Mas não: estavam calados, cabisbaixos, as mãos segurando a cabeça, pobres homens. Como todos nós, eles vieram ao Ninian Park, aqui no País de Gales, preparados para a alegria da vitória ou para a decepção de uma derrota, mas nunca para isso. Nunca.

Este é um momento de muita dor, e não só para nós, escoceses; não só para nós, apaixonados pelo futebol; não só para nós, que vivemos profissionalmente dele. Quando um homem morre, todo o drama de uma partida se torna pequeno, ínfimo, e o sentimento da perda fala mais alto. Fala com todos. Com certeza, o mundo inteiro vai se lembrar deste jogo por muitos e muitos an…

***

JIM LEIGHTON, goleiro escocês: Com certeza, um dia para esquecer. Deus me livre. Quero apagar para sempre o que eu vivi nesse estádio. Não tenho mais nada a fal…

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ALAN ROUGH, goleiro reserva escocês: Ainda não consigo entender muito bem o que aconteceu, sabe? Digo, tenho 34 anos, quase aposentado, não era nem para eu estar aqui. Eu engordei, já tinha desistido da seleção. Jock Stein disse que só me convocou porque a senhora dele sugeriu. Ele precisava de um goleiro reserva e não tinha ideia de quem escolher. Aí ela disse: “Eu gosto daquele Alan Rough.” E ele me chamou! “Agradeça à minha mulher”, ele me falou na concentração.

Não esperava jogar hoje. Jim Leighton é um grande goleiro. Há três anos ele é o titular, desde o fim da Copa de 82. Mas com pouco mais de dez minutos, Gales já tinha feito um gol. Eu estava no banco e vi que tinha alguma coisa errada com o Jim. Teve um cruzamento que ele simplesmente deixou passar, como se não tivesse visto a trajetória da bola. No fim do primeiro tempo, ele passou pela gente parecendo uma criança que tinha encontrado um fantasma embaixo da cama.

No intervalo, nós, os reservas, não descemos para o vestiário. Era para fazermos um aquecimento leve, mas não podíamos usar o gramado: uma banda militar ficava andando pelo campo, pra lá e pra cá. Então Davie Cooper e eu inventamos um jogo: ficamos um de cada lado da cancha chutando a bola por cima da cabeça dos músicos e vendo quantos chapéus conseguíamos derrubar. Foi engraçado.

Aí o fisioterapeuta chegou correndo, mandando eu descer. “O Jim está fora!”, ele gritou. Achei que era brincadeira, mas o cara tinha a expressão tão desfigurada que acabei indo. Jock estava em pé na área dos chuveiros, pálido, pensativo. Alex Ferguson, o assistente técnico, mandou eu vestir as luvas. Eu teria que jogar. “Sério?”, eu perguntei. O treinador veio andando devagar até chegar a menos de um palmo do meu nariz. Disse baixinho: “Conto com você, Alan.”

Respirei fundo, botei a luvas bem apertadas nas mãos e saí do vestiário de cabeça erguida. Olhei no fundo dos olhos daqueles milhares de galeses e me senti confiante como nunc…

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***

DAVIE COOPER, atacante reserva escocês: Alan, Alan. Quase se borrou quando soube que jogaria… Eu desci para o vestiário com ele e levamos um susto. Jock Stein estava vermelho, berrando como um capitão viking. Ninguém entendia o que ele falava. Estava puto da vida com o Jim. Claro, o maldito goleiro tinha tido a carreira inteira para contar que era míope, deixou para contar agora, no meio de uma partida decisiva? Tenha dó.

O pessoal me contou depois: ele chegou falando que tinha perdido uma das lentes de contato, por isso estava deixando passar as bolas. Não estava vendo direito! “Lente? Você usa lente?”, alguém perguntou. E aí ele disse que nunca tinha contado a ninguém, com medo de prejudicar a carreira. E prejudicar a gente, ele não pensou? Pior: ele não tinha uma lente reserva. “Mas eu tenho um goleiro reserva!”, gritou Jock. E mandou chamar Alan Rough.

Alan estava com os olhos arregalados. Jock foi andando devagar até ele e falou quase sem abrir a boca: “Você vai entrar, seu gordo filho da puta”. O cara botou as luvas correndo e subiu para o campo. Passou os 45 minutos seguintes tremendo, torcendo para a bola nem chegar perto. Sorte que Gales ficou enrolando no segundo tempo. Só tocando de lado.

Mas ainda estávamos fodidos, né. O resultado era dos caras. E o nosso melhor jogador, Kenny Dalglish, estava na arquibancada, machucado. Faltando uns trinta minutos para o jogo acabar, Jock me botou em campo. E eu resolvi a parada.

Corri, driblei, chutei, infernizei a defesa dos caras até uma bola bater na mão de um zagueiro. Pênalti. Na hora, pedi para bater. Gol. Ainda faltavam uns dez minutos, mas a gente se fechou. A vaga era nossa. Foi lind…

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***

KENNY DALGLISH, atacante escocês (contundido): Foi horroroso, cara. Que jogo horroroso. Vendo de fora, deu para sentir um pouco a merda que é torcer para essa seleção! A gente deu um rabo tremendo. Se aquela bola não batesse na mão do zagueiro, não faríamos um gol nem se o jogo durasse uma semana.

E quase que o Davie Cooper perde o pênalti. Ele nem queria bater, na verdade, mas os outros dez caras se esconderam. Teve gente que fingiu amarrar o tênis e ficou lá abaixado. Davie não teve alternativa senão pegar a bola e chutar. No fim, foi aquele sufoco. Dava para ver o Jock sem cor, sem expressão. Parecia um peru de Natal antes de entrar no forno. Acabou o jogo, conseguimos um lugar na repescagem — e nem assim deu para comemorar. Tem coisas que só acontecem com a Escócia, mesm…

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MIKE ENGLAND, treinador galês: Eram 43 minutos do segundo tempo, e o juiz apitou uma falta. Jock Stein achou que era o apito final e veio em minha direção, com a mão estendida, para me cumprimentar. Jock era assim: duro, mal-humorado, mas leal até os ossos. “Mantenha a dignidade”, era o que sempre falava.

No meio do caminho, ele tropeçou. Antes de cair, o pessoal segurou o corpo dele. Parecia estar sofrendo um ataque. Os médicos o levaram para os vestiários. Ele nem viu o jogo acabar. Morreu nos vestiários. Depois, Ferguson me disse que ele tinha tido um edema pulmonar. Disse também que ele tinha parado de tomar seus remédios, com medo dos efeitos colaterais. Jock queria estar 100% focado nesse jogo.

Foi muita pressão para ele. A semana inteira só se falava nesse jogo, na Grã-Bretanha inteira. A televisão estava transmitindo ao vivo desde manhã. E todo mundo criticando o homem, dizendo que seria uma vergonha a Escócia não se classificar para a Copa. Agora até a primeira-ministra está fazendo comentários sobre futebol… Gente, é só um jogo. Se Jock ficasse de fora, como no fim eu fiquei, paciência, oras. Esse negócio de “a história está sendo escrita…” me irrita profundamen…

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JOHN BROWN, narrador escocês: Bem, com este resultado, a Escócia vai para a repescagem, e joga por um empate com a Austrália para ir à Copa do México, no ano que vem. E estaremos lá, não é, Joseph?

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JOSEPH JORDAN, comentarista escocês: Com certeza, John!

Postado por: Marcos Abrucio

A Argentina perdeu para a Alemanha e para a Maldição de Tilcara

Postado por: Henrique Rojas

1986, ano de Copa do Mundo no México. O mês era janeiro e o treinador Salvador Carlos Bilardo resolveu levar seus convocados até a pequena e mística cidade argentina de Tilcara para um período de treinamentos.

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Ar rarefeito, grama rarefeita.

A escolha pelo local parecia inusitada, mas era justificável: com 2.460 metros acima do nível do mar, Tilcara era uma das raras opções para simular a altitude que os albicelestes enfrentariam alguns meses depois.

É bom lembrar que o selecionado argentino havia sido campeão do mundo em 1978, mas ao que tudo indicava, a eliminação frente Brasil e Itália na segunda fase do mundial de 1982 parecia ter mexido com os brios e a confiança dos hermanos. Por isso, durante uma pausa nos treinos, o grupo de jogadores foi até a igreja local e prometeu à Virgen de Copacabana del Abra de Punta Corral que, caso conquistassem o bicampeonato, voltariam com a taça para agradecer.

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Pelo menos a nossa Virgem tem manto azul.

Pois a história nos conta que a Argentina não apenas levou o caneco pra casa, como o fez de maneira invicta (6 vitórias, 1 empate, 14 marcados) e com a mão, vejam só, de Diós. Logo, é bem possível que a tal Virgem de Corral fosse bem chegada do Todo Poderoso…

O problema é que a promessa jamais foi paga. Nenhum atleta, nem mesmo Bilardo e sua comissão técnica, regressaram a Tilcara para agradecer.

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La mano del diablo.

E desde então, a história também nos conta um sem número de fracassos dos nossos vizinhos em Copas – incluindo aí dois vice-campeonatos, um deles no último domingo, diante da Alemanha no Maracanã.

Reza a lenda que moradores locais já fizeram por mais de uma vez a campanha Vuelvan a Tilcara. Mas como nenhum funcionário da AFA parece interessado na história, a maldição continua. E nem o Papa parece capaz de curar.

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Vulven a Tilcara. O no.

Amém.

Os Caniggias

Postado por: Marcos Abrucio

Se o Brasil não ganhou TODAS as edições da Copa do Mundo, a culpa é deles. Dos algozes, dos carrascos, dos verdugos do Brasil. Dos Caniggias.

Para quem não lembra ou estava no maternal na época: Caniggia foi o cara que, com sua pose de vocalista do Poison, recebeu uma bola açucarada de Maradona, driblou Taffarel e defenestrou a seleção do Lazaroni em 1990:

Giggia, Paolo Rossi, Cruyff, Zidane (duas vezes) também nos entubaram em Copas do Mundo. Mas foram ótimos jogadores, dos maiores de todos os tempos. O fato de terem esmigalhado o Brasil foi apenas um de seus muitos feitos.

Já Claudio Caniggia, não. Quando se fala nele, a gente só se lembra daquela tarde em Turim. Do ponto final de uma das piores campanhas brasileiras de todos os tempos. (Tudo bem, vai. A gente também lembra dessa foto.)

Pois bem, quem foram nossos Caniggias? Pra começar, um dos nossos maiores executores, o…

1) Chuveirinho Assassino

Talvez você não tenha reparado, mas nas últimas três Copas que o Brasil perdeu (2010, 2006 e 1998), fomos derrubados por gols de bola parada.

Pausa para a sessão nostalgia-masoquista. 1998 e o “Quem é que sobe?!”:

2006 e o “Sai, Dida!”:

2010 e o “Fica, Júlio Cesar!”:

Dureza. Mas tão perigoso quanto a sanguinária bola aérea é o…

2) Já-ganhou dos Infernos

Claro que o Uruguai tinha um grande time. Mas o diabólico clima de “já-ganhou” criado nos dias que antecederam a final de 1950 foi determinante para a derrota brasileira.

Não por culpa dos jogadores, que fique claro. Um jornal carioca botou em letras garrafais, em cima da foto da seleção: “Eis os Campeões Mundiais” – ANTES do jogo. Políticos não saiam da concentração. Mendes de Morais, então prefeito do Rio, exigiu a vitória em discurso inflamado no Maracanã: “Eu cumpri minha palavra construindo esse estádio, cumpram agora seu dever vencendo a Copa do Mundo.

Com tanto peso nos ombros, não podia dar certo.

Claro que a Holanda de Cruyff era melhor que o Brasil em 1974. Se os dois times jogassem mais duzentas vezes, talvez empatássemos uma ou duas e olhe lá. Mas que o Brasil menosprezou aquele time, ah, menosprezou. Não é, Zagallo?

Além desses dois, também fomos vítimas de outro Caniggia: o…

3) Destino Vil e Cruel

Só o Destino Vil e Cruel explica o grande Leônidas da Silva, artilheiro e melhor jogador da Copa de 1938, tenha sido apenas o terceiro colocado no Mundial.

Diamonds are forever.

Diamonds are forever.

O Destino Vil e Cruel, esse fanfarrão, determinou que a geração de Zico, Sócrates e Falcão não levantasse o caneco ao menos uma vez. O DVC, esse dissimulado, ainda nos fez acreditar que o Galinho, ao perder aquele pênalti em 86, era o nosso algoz. Mentira. A culpa é do Destino, esse canalha. Canalha, vil e cruel.

Por outro lado, ora, ora, ora, quem também nos abateu em pleno voo foi o…

4) Destino Sábio e Misericordioso

Sim, ele também sabe o que faz. E acertadamente nos tirou de Copas que não merecíamos, de forma alguma, vencer. Como em 1930, 34, 54, 78 e 90.

Em 30 e 34, as federações cariocas e paulistas brigaram, impedindo craques como Arthur Friedenreich de embarcarem para a Copa. Perdemos logo de cara, bem feito para nós.

Em 54, apanhamos da Hungria na bola e partimos para o pau, em um dos episódios mais tristes das Copas, a Batalha de Berna. Feio, feio…

Para a Copa de 66, foram convocados 47 jogadores (!), entre eles dois Ditões (!!). O certo era o do Corinthians, mas chamaram por engano o do Flamengo. Para não ficar chato, deixaram os dois.  Na Argentina, em 78, Chicão foi convocado, Falcão não. Dá pra ser campeão assim?

Em 90, um time triste, com três zagueiros, três volantes – e ninguém marcando o Maradona. Quis o Destino, de forma sábia e misericordiosa, que não passássemos das oitavas. Não merecíamos mais do que isso. Mais do que o Caniggia argentino, foi a intervenção desse Caniggia onipotente que nos mandou de volta para casa mais cedo.

***

Que Caniggia pode nos derrubar agora? Difícil dizer antes da bola rolar. Os Caniggias são sorrateiros e aparecem de surpresa na área, sem marcação (né, Dunga, Alemão, Mozer, Ricardo Gomes, Mauro Galvão?).

Grandes adversários vão aparecer em nosso caminho. Mas por enquanto, meu maior temor é de um parente do Já-ganhou dos Infernos: o Terrível Não-Pode-Perder-Nem-Ferrando. O medo das consequências de uma derrota (vergonha mundial? Saques? Quebra-quebra?) pode pressionar nosso time a ponto de paralisá-lo.

Toc, toc, toc. Vira essa boca pra lá.

Por ora, importante mesmo é o que o vídeo abaixo comprova: a Copa finalmente chegou no Brasil!

 

Chutou, é fogo, é gol II – A pintura e a poesia

Postado por: Marcos Abrucio

Rio de Janeiro, 16 de julho de 1950. Depois do apito final, só se ouviu o silêncio.

200 mil brasileiros estavam em choque. E não muitos uruguaios estavam lá para comemorar: sem esperança do título, os dirigentes da celeste voltaram para casa antes do jogo. “Só ficaram o técnico, o preparador físico e três massagistas”, lembra Ghiggia, aquele que martelou o último prego no nosso caixão.

Depois daquele velório, o Brasil foi cinco vezes campeão do mundo, enquanto o futebol uruguaio mergulhou em uma longa decadência. Até hoje, procuram substitutos para Ghiggia, Varela, Máspoli…

Os heróis de 50. Ou vilões, né.

Os heróis de 50. Ou vilões, né.

Até os 15 anos, Victor Hugo Morales acreditava que poderia ser um desses caras. Treinava todos os dias para ser o próximo uruguaio a levantar a Copa. Mas então teve a revelação: era ruim demais para isso. Decidiu se tornar jornalista – esportivo, é claro.

Ele nunca imaginaria que essa decisão o faria participar de um dos maiores momentos da história das Copas. E que, nesse momento, ele não vestiria as cores do Uruguai, mas da rival da outra margem do Rio da Prata: a Argentina.

***

Colônia do Sacramento, 20 de abril de 1964. Com apenas 16 anos, Victor Hugo vai pedir emprego na Radio Colônia. Dois anos depois, já era, segundo ele, o locutor mais jovem das Américas.

Logo foi para Montevidéu, onde acumulou os cargos de narrador e diretor de esportes da Radio Oriental. No fim da década 70, sua oposição à ditadura uruguaia começou a lhe causar problemas. Pressionado pelos militares, mudou-se para a Argentina em 1981. Nunca mais voltou.

Na Copa de 1982, narrou para a TV argentina aquele Itália 3 x 2 Brasil, ugh. O jogo acabou e Victor Hugo olhou para a arquibancadas, onde os torcedores antes batucavam sem parar. Viu os brasileiros mais uma vez calados.

Foi uma das poucas vezes na carreira em que se sentiu completamente vulnerável. Começou a chorar imediatamente:

“Me partió el corazón el silencio de los espectadores brasileños. No entendían nada en la tribuna del estadio.”

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Nossa segunda morte.

Quatro anos depois, sua emoção seria ainda mais forte.

***

Cidade do México, 22 de junho de 1986. O locutor uruguaio-argentino estava tenso. Primeiro, porque tinha parado de fumar e sentia uma fome incontrolável. Estava 14 quilos mais gordo.

Mas o motivo principal era o jogo à sua frente: Argentina x Inglaterra, valendo uma vaga nas semifinais da Copa do México. Mentira: a partida valia muito mais do que isso.

(Um ótimo relato dela está aqui.)

Dentro de campo, argentinos e ingleses se estranhavam desde 1966, quando o pau quebrou em plena Copa do Mundo. Depois de pontapés e xingamentos dos dois lados, o argentino Rattín acabou expulso. Na saída, torceu a bandeira do Reino Unido pendurada no escanteio e se sentou no tapete da rainha. Os ingleses se saíram vencedores e passaram a chamar carinhosamente os rivais de “animais”.

Fora de campo, a encrenca foi mais séria. Em 1982, tropas argentinas tentaram recuperar o controle das Ilhas Malvinas, em uma manobra populista dos militares que governavam o país. No começo, a manobra deu certo, despertando o sentimento patriótico nos hermanos. Mas logo o poderio bélico inglês se impôs, e as Ilhas voltaram a se chamar Falklands, ao custo de quase mil mortos, em sua maioria argentinos.

De volta ao jogo, agora em definitivo. Victor Hugo começa a narrar. Primeiro tempo morno, 0 x 0. No segundo, ele vê Diego Armando Maradona reescrever a história, ops, História.

Aos 6 minutos, El Pibe vence uma disputa aérea com Peter Shilton e abre o placar. O estádio inteiro viu que foi com a mão. Bilhões de pessoas ao redor do mundo viram que foi com a mão. O juiz não. Tão incrível quanto isso é um cara de 1,65 cm conseguir subir mais que um goleiro um palmo mais alto do que ele…

Sai que é sua, Shilton!

Sai que é sua, Shilton!

Uma animosidade de 20 anos atravessada na garganta, uma guerra fresca na memória, um gol de mão recém-convertido. Tudo isso borbulhava na cabeça de todos.

Aí Maradona, em um equivalente futebolístico de um solo perfeito de guitarra, pegou a bola em seu campo, driblou meio time da Inglaterra e tocou para dentro. Ele não apenas fez o maior gol das Copas, mas redefiniu o conceito de golaço. O ritmo crescente dos dribles, a velocidade da corrida e a epifania final são até hoje o padrão com o qual qualquer gol de placa é comparado.

Mas Maradona não fez aquela obra-prima sozinho: Victor Hugo Morales ajudou a deixar aquele gol ainda mais bonito.

Sua narração daqueles segundos se tornou histórica – ironicamente, por narrar quase nada do lance. Ele simplesmente para de relatar o que estava acontecendo para se deixar levar por uma corrente de sentimentos. Grita, chora, faz de improviso uma poesia que resume perfeitamente um momento histórico complexo – e que emociona até hoje.

A maior narração de todos os tempos. Olho no lance:

– Ahí la tiene Maradona, lo marcan dos, pisa la pelota Maradona. Arranca por la derecha el genio del fútbol mundial. Puede tocar para Burruchaga… Siempre Maradona. Genio, genio, genio! Ta, ta, ta, ta, ta … Gooooooool gooooooool! Quiero llorar! Dios santo, viva el fútbol, golaaaazo! Diegoooool! Maradona! Es para llorar, perdónenme, Maradona en recorrida memorable, en la jugada de todos los tiempos, barrilete cósmico, de qué planeta viniste para dejar en el camino a tanto inglés, para que el país sea un puño apretado gritando por Argentina? Argentina 2 – Inglaterra 0. Diegol, Diegol!, Diego Armando Maradona. Gracias, Dios. Por el fútbol, por Maradona, por estas lágrimas, por este Argentina 2 – Inglaterra 0. 

***

Victor depois diria que era um dos poucos jornalistas que acreditava naquela seleção desde o começo. A explosão na hora do gol seria em parte causada pelo “prazer que dá ter razão”. Mas não foi só isso: ele percebeu na hora que algo gigantesco estava acontecendo – por isso cravou ao microfone: “a jogada de todos os tempos”.

Sem contar, claro, a mais linda das metáforas, ao chamar Maradona de “pipa cósmica” (!). Pipa por ter movimentos imprevisíveis, cósmico para dar ideia do tamanho daquela realização.

A poesia e a pintura.

A poesia e a pintura.

Em entrevista ao jornal “As”, Victor Hugo Morales admitiu ter passado anos sem assistir ao lance. O motivo?

“Era como se tivessem me filmado correndo bêbado e pelado pela rua. (A narração daquele gol) É um striptease espiritual.”

Depois mudou de ideia e fez a pazes com a narração: “quem sou eu para ficar alheio a algo que tanto me deu?”

Gracias.

Victor Hugo Morales.

Victor Hugo Morales.

***

Veja também: Chutou, é fogo, é gol I.