Bem que a moça do tempo tinha dito, Neílson pensou. Na hora do jogo ia cair um dilúvio. Mesmo assim, ele saiu de casa de shorts e chinelo, com o uniforme dobrado dentro da mochila e sem guarda-chuva. Como morava perto do velho estádio, dispensava o ônibus fretado dos outros jogadores e ia sempre a pé para as partidas. No meio do caminho, o aguaceiro o pegou. Chegou correndo e ensopado ao vestiário, lamentando-se de ter esquecido a previsão da apresentadora bonita do jornal. Mas ela estava errada. Aquele aguaceiro que agora Neílson via pela veneziana não era “um” dilúvio, mas “o” dilúvio. Foi o que a figura bonachona, de terno azul-bebê, veio avisar.
“Preciso falar com você, meu querido”, disse baixinho o homem, com sotaque indecifrável, ao meia-esquerda parado em frente à janela.
O vestiário estava quase vazio. Dois funcionários do clube usavam rodos e panos para secar o chão que começava a ser batucado pelas goteiras. Nenhum jogador tinha chegado — a chuva deve ter atrasado o ônibus, que também não era tão novo assim. Capaz de ter enferrujado de vez. Neílson virou-se para o homem. Ele tinha uma espécie de sorriso perpétuo no rosto, cabelos muito loiros, roupa de representante de vendas de alguma marca de sapatos baratos. Só podia ser uma coisa: empresário de jogador. Italiano. Russo, quem sabe. Dos mais mafiosos. Bom, era o que Neílson gostaria que ele fosse.
“Desculpa, agora não posso. O jogo vai começar assim que a chuva der uma parada”, Neílson respondeu.
“A chuva não vai parar. As janelas do céu se abriram.”
Neílson reconheceu aquele tom. Parecia a Renata, sua mulher. De vez em quando, ela falava coisas simples de um jeito difícil. Quando se conheceram, ela disse que “Deus tinha feito o caminho deles virar um só.” Se ele perdia algum jogo, era “um chamamento para renovar a sua fé.” Agora, estava chovendo, e o homem dizia que “as janelas do céu se abriram”.
“Como você sabe que não vai parar?”, perguntou Neílson. “Também trabalha com previsão do tempo, que nem a moça da TV?”
“Com outro tipo de previsões”, respondeu o homem, sempre sorrindo.
“Ah. Achei que você era empresário”, disse o jogador, sem esconder a decepção. “Da Itália.”
“Não, eu vim te levar para mais longe do que a Itália.”
“Rússia?”
“O reino dos céus.”
Ih, Neílson entendeu tudo. Já tinha ouvido aquela conversa muitas vezes durante a carreira.
“Você é dos Atletas de Cristo?”, perguntou.
O homem deu uma gargalhada de vovô em comercial de margarina: “De certa forma, sim.”
Os funcionários do clube agora usavam baldes para levar a água que subia dos ralos. Lá fora, nenhum torcedor nas arquibancadas de cimento ensopado. Ao fundo, Neílson ouviu de um radinho a voz abafada de um repórter falando algo sobre as chuvas, pontos de alagamento, enchentes. Março era sempre assim. Será que a Renata tinha conseguido chegar em casa? Ela trabalhava como caixa em um supermercado do centro, às vezes ficava duas horas no trânsito, mas nem ligava, ia lendo a Bíblia.
O homem percebeu que tinha perdido a atenção de Neílson, parou de rodeios e foi direto ao ponto: aquela chuva que encharcava o gramado judiado do Santo Antônio F.C. ainda duraria quarenta dias e quarenta noites e mataria toda forma de vida que não estivesse protegida em uma arca. Uma arca mais moderna, com cabines individuais e entretenimento a bordo, mas ainda uma arca. Quem estivesse fora dela, já era.
“Por que tanta violência?”, disse Neílson, com a boca entreaberta.
“O Senhor viu que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra. Ela estava corrompida diante da face de Deus. Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem.”
“Caramba, Ele tá nervosão, hein?”
“Tá”. Pela primeira vez, o sorriso some da expressão do homem de terno. “Peraí, você está fazendo pouco das minhas palavras? Não acredita na vontade de Deus?”
“N’Ele eu até acredito”, defendeu-se Neílson, da mesma maneira com que respondia aos Atletas de Cristo e às conversas da Renata. “O que está difícil de acreditar é nessa história de arca aí…” Um relâmpago iluminou o céu e o campo ficou escuro. Aparentemente, os refletores se apagaram. Nenhuma novidade, o clube estava sempre com a conta de luz atrasada. Mas Neílson ficou mais sério: se os túneis do centro encheram, a Renata podia estar presa em algum ônibus.
O enviado de Deus entendeu que sua abordagem não estava adequada. Como Neílson acreditaria no que ele estava falando? Precisava dar a ele uma prova. Uma prova concreta.
“Você está preocupado com a Renata, não é?”, disse o homem.
“Você conhece a minha mulher?”. Neílson não era de ter ciúmes, mas dava para perceber um incômodo na sua voz.
“Na minha função, eu tenho que conhecer todo mundo. A Renata está bem. Fale você mesmo com ela.”
Um ruído como o de um choque elétrico às costas de Neílson o fez virar. Sua mulher estava ali.
“O que aconteceu? Neílson, onde eu tô?”, Renata perguntou, alarmada.
O homem de terno azulzinho tomou a frente: “Eu, na qualidade de mensageiro do Senhor, trouxe você para o lado do seu marido. Estava dizendo para ele que esse mundo vai se acabar em água, e não é maneira de dizer, não.” Um halo amarelado parecia envolver sua cabeça, mas era a lâmpada do vestiário que começava a falhar. Os empregados que tentavam manter o vestiário seco tinham sumido e a água agora chegava aos tornozelos de Neílson, sua mulher e o tal mensageiro.
Renata se ajoelhou na água gelada e ergueu os braços para o teto infiltrado do vestiário: “Sabia que esse dia ia chegar, Senhor. Pode me levar! Estou pronta para ser sacrificada! Pode sacrificar o Neílson também!”
“Pô, Rê…”, Neílson protestou.
“Calma, Renata”, disse o outro homem, ajudando a mulher a se levantar. “Eu vim aqui justamente para dizer ao Neílson que ele vai ser poupado.”
O jogador e sua mulher se entreolharam e falaram ao mesmo tempo: “Como é que é?”
“A ideia inicial era fazer como no primeiro dilúvio”, foi explicando o homem, como se virasse as páginas de um catálogo de vendas. “Salvar os animais, de dois em dois. Faz uma semana que eles foram convocados, já estão lá na arca. Mas como o Senhor queria preservar tudo que o mundo tinha de bom para a eternidade, tivemos que adicionar alguns outros seres.”
Ele contou que, embora decepcionado com a raça humana em geral, Deus também tinha escolhido para povoar o paraíso pintores, poetas, músicos, militantes da paz mundial e contra o aquecimento global, a Fernanda Montenegro, o Paulinho da Viola e o Dráuzio Varella, entre outros. O que a Terra tinha de melhor. Mas esse mundo não seria perfeito, continuou a figura celestial, sem um futebolzinho no domingo — dia em que o Senhor gostava de dar uma relaxada.
“Então eu fiquei de chamar dois goleiros, dois zagueiros-centrais, dois volantes, dois centroavantes… bem, você entendeu. De dois em dois, sempre. Para montar dois times, sabe?”
“E eu?…”, inclinou a cabeça Neílson, cada vez mais atônito.
“Meia-esquerda de um dos times.”
“Caramba, não tinha meia-esquerda melhor no mundo do que eu? E o Messi?”
“O critério não foi só chamar bons jogadores, Neílson. Queríamos pessoas boas.”
“Mas eu, bom? Eu nem sou Atleta de Cristo!”
“Pois é”, sorriu o homem, com o máximo de maldade que era permitida a alguém como ele. Então descreveu a vida e a carreira de Neílson: nunca tinha traído, nunca tinha roubado, nunca tinha entregado um jogo por dinheiro, avisava o juiz quando cometia alguma falta, jogava a bola para fora quando o adversário estava caído. Muitas vezes a torcida o odiava por isso, mas o pessoal lá de cima era fã dele. Seu lugar era no céu, ou melhor, no campo dos céus, ao lado dos mais puros e decentes jogadores.
“O Marcelinho Carioca também foi chamado?”, Neílson perguntou.
“Em princípio não, mas ninguém bate faltas como ele, então o Senhor fez questão. Você vem, Neílson?”
Uma coluna de água entrou pela janela. O mundo inteiro devia estar submergindo naquele momento. Neílson olhou para a mulher. Ninguém mais do que ela merecia a redenção final. “E a Renata?”, perguntou.
O homem de terno fez um gesto pedindo calma e começou a mexer no bolso. Tirou de lá um caderninho com uma caneta presa à capa. Folheou algumas páginas até encontrar o que procurava: “A Renata tá na lista de espera, mas posso dar um jeito de botar vocês na mesma cabine, sem problema!”
Neílson virou de novo para a mulher, dessa vez com os olhos apertados: “Por que você estava só na lista de espera?”
Ela gaguejou, baixou os olhos e foi salva pelo representante divino, que apontou a água que já batia na barriga deles: “Gente, estamos meio sem tempo…”
Silêncio entre o jogador e a mulher. Para acabar com aquilo, o parça de Deus pegou os dois pelos braços e falou: “Neílson, a Renata vai ter quarenta dias e quarenta noites para te explicar. Vamos!”
E desapareceram do vestiário, bem na hora em que a água tomou conta de tudo.
Postado por: Marcos Abrucio