Por que a Copa?

Postado por: Marcos Abrucio

2010

Copa da África do Sul, 2010.

Há exatos quatro anos, o pessoal da Editora Cortez me pediu um texto sobre a Copa do Mundo. Para quem não conhece, a Cortez cresceu no meio acadêmico, principalmente entre as ciências sociais. O texto seria disparado para o mailing da editora — formado em sua maioria por professores, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos…

Ih, ferrou. De cara, estava descartada qualquer tentativa de explicação antropológica das Copas, sob o sério risco de passar vergonha. Nada que eu falasse seria novo ou revolucionário. E pô, é a Copa, nunca ouviram falar?

Inglaterra, 1966.

Copa da Inglaterra, 1966.

Resolvi simplemente falar porque eu gosto tanto desse campeonatinho mequetrefe — o que, no fundo, é o que venho fazendo aqui há tanto tempo.

Lembrei hoje daquele texto por dois motivos. O primeiro é o debate, necessário e importante, sobre a realização da Copa no Brasil. Sim, os escândalos, os superfaturamentos, as pataquadas e roubalheiras do trio FIFA-CBF-governos brasileiros são vergonhosos – embora algumas vergonhas não são assim tão sinceras

Sim, não era preciso ter gasto tanto dinheiro para fazer uma Copa aqui – e bem que ela podia ser um pouco mais brasileira. No fundo, nem era preciso fazer essa joça aqui. Tudo isso é verdade. Mas, ao mesmo tempo, essa joça é um dos eventos mais legais do planeta

O que me leva ao segundo motivo de ter lembrado daquele texto, que foi ter relido a magnífica frase de Mauro Cézar Pereira: O futebol é a maior invenção do homem.

Talvez não seja (já comeu doce de leite argentino?). Mas que tá no Top 5, ah, tá. Abaixo, reproduzo o o texto que mandei para a Cortez . Depois, eu volto para atualizar meu pensamento.

*** 

A detestável Copa do Mundo

Nas ruas de qualquer cidade do Brasil, um cenário pós-apocalíptico. O comércio está fechado, as calçadas vazias, e o trânsito evaporou — ei, até que a imagem não é assim tão ruim.

A sensação de abandono só não é completa porque, bem ao fundo, você ouve uma voz ritmada. E depois, um grito em uníssono de “Gol!”. Você descobre, enfim, que os brasileiros não foram vitimas de uma hecatombe nuclear. Estão todos em frente a TVs e telões, dentro de casas e bares, assistindo à estreia do Brasil na Copa do Mundo.

México, 1970.

Copa do México, 1970.

Os brasileiros não estão sozinhos. A audiência esperada para esta Copa ultrapassa em muitas vezes o número de habitantes da Terra. Isso quer dizer que praticamente todas as pessoas do planeta verão mais de um jogo do Mundial. Algumas, todos. Mas o que explica o sucesso de um evento tão detestável?

Sim, são muitos os motivos para a odiar a Copa do Mundo.

Enquanto ela não acaba, assuntos realmente importantes como as eleições, o combate à miséria, a educação, a saúde e o sentido da vida são deixados de lado. Ninguém dá bola para nada a não ser para… a bola.

A Copa cria um nacionalismo de fachada, que exige a vitória contra os estrangeiros sem se preocupar com uma real melhoria do pais.

As rivalidades atiçadas pela bola rotineiramente se transformam em violência, como mostram os hooligans ingleses, os barra bravas argentinos e os torcedores organizados brasileiros.

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Inglaterra, qualquer época.

O negócio do futebol bate cartão nas páginas policiais, com transações escusas, denúncias de corrupção e de lavagem de dinheiro. Até a camisa dos times e a bola do jogo teriam culpa no cartório — pelo suposto uso de trabalho infantil por parte das fabricantes de material esportivo.

E tudo isso é soterrado pelo rolo compressor do marketing que, meses antes do apito inicial, decreta que só ela, a Copa, importa. E que ela justifica tudo.

Ufa. Mas sabendo de tudo isso (você sabia, né?), por que ainda damos trela para a tal Copa?

A resposta está dentro de campo: no próprio futebol e em suas histórias.

Os gregos já incensavam a prática esportiva como forma de levar o corpo à sua plenitude, o que o conhecimento e a filosofia fazem pela mente. Com o passar do tempo, o esporte se mostrou muito mais do que isso.

Trata-se de um celeiro interminável de histórias fantásticas e de personagens que são admirados por suas façanhas sobre-humanas — ou apenas por sua humanidade. E talvez nenhum esporte tenha conseguido conquistar tanta gente e motivado tantas paixões como o futebol.

Não há certezas sobre as razões disso, apenas suposições. Há quem diga que o futebol é fascinante por ser uma metáfora perfeita da vida (ou da guerra) — e há quem concorde, mas justamente por ele não ser nada disso.

Para muitos, este é o esporte mais democrático de todos, em que baixinhos como Maradona e Romário, jogadores com as pernas tortas como Garrincha e de joelhos estropiados como Ronaldo podem vencer os maiores, os mais fortes e os mais saudáveis.

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O baixinho, 1986.

Em uma época em que em várias partes do mundo os negros não podiam nem dividir o banco de um ônibus com um branco, o futebol alçava à categoria de “rei” um negro, Pelé. O brasileiro se tornou um ídolo planetário, até de quem tomava os negros como cidadãos de segunda classe.

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O negão, 1973.

Em 1998, Irã e Estados Unidos se encontraram na Copa da França. Antes do jogo, os jogadores dos dois times trocaram flores e posaram juntos para a foto oficial. Fizeram o que os governantes dos dois países não conseguiram até hoje: conviver em paz.

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Copa da França, 1998.

Antes da reunificação de fato das Alemanhas, o povo alemão das duas bandas do muro comemorou junto a vitória ocidental na Copa de 90:

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Copa da Itália, 1990.

Mas não é preciso ir tão longe. Todo mundo que tem um time de coração já viu (e viveu) dezenas de histórias de superação, dezenas de vitórias e de derrotas que ensinaram valiosas lições.

O futebol tem o dom de se fazer a coisa mais importante do mundo e nos elevar às alturas da dor e do prazer. E, em seguida, de nos puxar de volta ao solo como se dissesse: “Calma, é só futebol. Importante é a vida”.

Golaços como os citados fazem o futebol ser tão apaixonante. E como a Copa do Mundo é o momento máximo desta paixão, nada mais natural do que pararmos e admirarmos cada um de seus lances. Apesar de tudo. Por causa de tudo. Agora, shhhhh, que o jogo vai começar.

***

Quatro anos depois, o contexto e o clima da Copa são diferentes. Perdemos a chance de usar o evento mais legal do mundo para deixar o país melhor. Perdemos a chance de mostrarmos o que temos de melhor para o mundo — e fizemos o contrário, escancarando os nossos piores defeitos para o mundo.

Por um lado, foi até bom: a Copa no Brasil catalisou um sentimento de indignação que parecia irremediavelmente adormecido. De unanimidade entre os brasileiros, a ela virou pretexto para protestarmos contra tudo que não concordamos.

Se uma coisa tem a ver com a outra ou não, é outra história. Eu realmente acredito que existe um caminho intermediário entre a empolgação acéfala com o Mundial e a demonização total de tudo que ele significa.  Mas isso é assunto para outro post. Amanhã escrevo.

Por hoje, achei pertinente relembrar essa velha defesa da abominável Copa do Mundo.

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