Além de um bom meia-armador, uma outra espécie anda em falta no futebol brasileiro: o ídolo.
Lembra? Aquele cara que matava a pau dentro de campo e que continuava sendo admirável quando o jogo acabava. E que assim garantia um lugar no pôster que você colava na parede do quarto. (Colava, vai.)
Pois é, as coisas mudaram um pouco. Hoje tem ídolo que ameaça emporcalhar sua biografia ao se bandear para o suspeitíssimo time da cartolagem. (Ainda bem que, surpreendentemente, há exceções.)
Tem ídolo que chega ao primeiro milhão muito antes de chegar ao primeiro titulo. Até aí, tudo bem. Mesmo. O problema é ele não saber que é o futebol que o alimenta. E que, ao mesmo tempo, o futebol é apenas uma parte do seu papel de ídolo e de cidadão.
Tudo bem pensar na balada, na chuteira colorida ou se apareceu bonito no telão. O problema é, simplesmente, não pensar.
Orientado por assessores e patrulhado pelo politicamente correto, os ídolos de hoje não ofendem ninguém, não contrariam chavões, não fogem do roteiro, enfim, não falam nada. (De novo, ainda bem que há exceções aqui e ali.)
E aí, nós, torcedores, começamos a preferir nem chegar muito perto deles, os ídolos. Para não descobrir que você nunca conversaria com o gênio da bola se ele não fosse… um gênio da bola. Melhor não. Eles lá e você aqui.
Mas houve uma época em que isso era diferente. Época em que o ganhador do moto-rádio da rodada também era um cara bem legal de se sentar ao lado numa mesa de bar.
Época de Zico, de Falcão, de Reinaldo.
Época de Sócrates.
Minha formação como torcedor se deu assistindo ao time de Sócrates, Casagrande, Wladimir, Biro-Biro… Adorava todos eles, mas Sócrates era claramente o líder, a voz a ser respeitada. Era o herói dos meus irmãos mais velhos, logo, o meu herói.
Cresci admirando tudo que ele fazia ou falava. Sócrates parecia estar sempre do lado certo, embora nem sempre do lado vencedor.
Mesmo sem nunca o ter conhecido, posso dizer que aprendi muito com ele. O Doutor foi meu professor em aulas sobre:
– Liberdade: se o jogador é adulto e responsável, por que tem que ficar confinado em uma concentração? Ou: para fazer seu trabalho direito, a pessoa tem que ficar presa?
Mais: se ele não queria comemorar com a torcida, não comemorava. Ponto. Se sim, sim. Simples assim.
O Magrão me ensinou que somos todos livres.
– Democracia: todo mundo tem direito a voto, do dirigente ao roupeiro, seja para escolher o esquema de jogo, o nome do técnico ou o presidente da república.
Assim como muita gente, aprendi o significado da palavra “democracia” assistindo a uma partida de futebol.
– Pedagogia: o cara era jogador e… formado em medicina. O melhor argumento possível para mandar as crianças jogarem bola só depois de fazerem a lição de casa.
E até…
– Educação Moral e Cívica: na estréia do Brasil em 1986, em vez do Hino Nacional, tascaram o hino… da Bandeira. Percebendo a presepada, Sócrates deixa claro o seu protesto.
Mas acho que a maior lição sobre a vida que aprendi com Sócrates é que nem sempre você consegue o que quer.
Um exemplo: o Brasil inteiro queria, depois de duas décadas, votar para presidente. Milhões de pessoas invadiam as ruas em uma campanha emocionante. Entre elas, estava Sócrates. Um dos maiores ídolos esportivos do Brasil afirmava que abriria mão de qualquer transferência para o exterior se a emenda das Diretas Já fosse aprovada.
Era uma demanda popular justa, legítima, que tinha que ser atendida. Não foi.
Outro exemplo: Sócrates brilhou em um dos melhores time de todos os tempos: a seleção de 82.
Poucas vezes tantos craques ocuparam de uma vez só a mesma escalação, uma espécie de “Best of” do futebol brasileiro.
Até hoje aquele time mexe com a torcida: num almoço na semana passada, a TV do restaurante mostrava os gols da campanha de 82. Em todas as mesas, as pessoas largaram os garfos e passaram a assistir, a comentar e a comemorar (!) cada gol como se não houvesse passado quase trinta anos.
O time de Sócrates, Zico, Falcão, Éder, Cerezo, Júnior e Leandro ganhava seus jogos com autoridade, jogava bem e encantava a torcida. Tinha que ganhar. Não ganhou.
Aprendi muito com o camisa 8 do meu time. Mas admito: de nada adiantaria toda a inteligência dele se ela também não entrasse em campo. Se ele não fosse craque.
E que craque ele era.
Se ele era um herói para mim, o toque de calcanhar era o seu genial superpoder. Uma jogada que nasceu de uma deficiência (alto, magro e com os pés pequenos, Sócrates não conseguia girar o corpo com velocidade. Para não ser desarmado, passou a tocar de primeira, de costas mesmo), que virou uma marca registrada mas sem nunca deixar de ser objetiva, eficiente — e brilhante.
Não há espaço no futebol de hoje para um jogador barbudão, magrelo, desengonçado, assumidamente fumante e cachaceiro como foi Sócrates. Infelizmente, também não há para um jogador com toda a sua inteligência, clareza, liderança e generosidade.
Sócrates seria um ídolo onde quer que atuasse. O futebol teve a sorte dele ter escolhido ser um jogador. A gente agradece.
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Mais:
– Casagrande sobre o parceiro: “Metade da minha história foi embora.”
– Zico: “Gênio leal.”
– Homenagem na final.
– Por Alexandre Matias.
– Texto no New York Times.
– Na BBC.
– O melhor, no The Guardian.