Memento

Saint Denis, França, 12 de julho de 1998. A zaga comeu muita bola (mas não cabeceou nenhuma), Roberto Carlos se embananou todo, Ronaldo não brilhou, o time todo esteve em câmera lenta. E Zidane apareceu, meteu dois gols e fez a irregular França de 98 aplicar a maior piaba que o Brasil já levou na história das Copas.

Naquele dia, a França atacou melhor, defendeu melhor e viu nascer seu maior herói desde Asterix. Mereceu o titulo. E nada pode ser usado como desculpa pelo (não-)desempenho do Brasil.

(Nem o suposto piripaque de Ronaldo horas antes do jogo. Que, aliás, não foi nada demais. No melhor livro já feito sobre o centroavante, “Ronaldo – Glória e Drama no Futebol Globalizado, o autor Jorge Caldeira enterra as teorias de convulsão, ziquizira ou amarelagem. Ronaldo não teve nada disso, e sim um mero distúrbio do sono, como o terror noturno, que provoca contrações faciais, palavras desencontradas e só. Desde garoto o Fenômeno tinha essas coisas, e tudo bem: o terror noturno é inofensivo, e só tem esse nome por assustar não quem tem o surto, e sim quem o assiste. Se o cara estivesse sozinho no quarto naquele dia, ninguém nunca saberia dessa história —­ nem ele.)

Mas que naquela Copa faltou alguém para dividir a responsabilidade (e a marcação dos adversários) com o jovem craque, ah, isso faltou. Alguém para decidir jogos encrencados e dar brilho a um elenco que tinha (eu sei, é duro lembrar) Júnior Baiano, Zé Carlos e Gonçalves. Esse alguém era o Romário.

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Ozoir-la-Ferrière, França, 2 de junho de 1998. Carregando uma contusão na panturrilha desde um jogo de futevôlei, Romário é dispensado da seleção que disputaria a Copa. O fisioterapeuta Claudionor Delgado culpou uma “desinserção da aponeurose do músculo gêmeo interno”. Em português, a membrana do músculo dele se soltou. Quando o peixe fazia esforço, doía. O médico Lídio Toledo pediu uma ressonância magnética e, após estudar os resultados com a comissão técnica, recomendou o corte: a contusão não melhoraria a tempo.

Romário jurava que se recuperaria, pelo menos para as fases finais da Copa. Mas na comissão técnica estava Zico, que defendeu o corte desde a primeira puxada de perna do baixinho (começando uma inimizade que, parece, só acabou agora). Rixas à parte, o Galinho achava que a seleção não poderia correr o risco de ter um jogador baleado. E assim repetir uma história que ele conheceu bem, vivida 12 anos antes.

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Guadalajara, México, 21 de junho de 1986. Segundo tempo das oitavas de final contra a França. Zico acabara de sair do banco quando enfiou um passe cirúrgico para Branco driblar o goleiro e sofrer o pênalti. Durante toda a Copa, Zico entrava no decorrer dos jogos, buscando pouco a pouco recuperar sua condição física. Nos poucos minutos em que jogava, dava mostras generosas como essa do seu enorme talento. Mas ainda faltava ritmo, explosão.

Um dos maiores batedores de pênalti do futebol mundial, Zico cobra e manda a bola nas mãos do goleiro Bats. Depois, na decisão por pênaltis, ele marca o seu, mas o Brasil é eliminado.

A era do meio-campista na seleção terminava sem que ele conseguisse de amarelo o que alcançou de rubro-negro; o título mundial. Foi também o fim da corrida para consertar seus joelhos a tempo de funcionarem a contento naquela Copa. Corrida que começou quase um ano antes, com uma violenta colisão frontal.

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Rio de Janeiro, Brasil, 29 de agosto de 1985. Quinta-feira à noite, Maracanã quase vazio. No segundo tempo de um modorrento Flamengo x Bangu, as travas das chuteiras do lateral esquerdo Márcio Nunes encontraram as pernas de Zico. O flamenguista teve torções nos dois joelhos, lesões no perônio e nos tornozelos e escoriações diversas. Foi operado, lutou para não ficar dependente de morfina e nunca mais foi o mesmo.

A tenebrosa entrada não marcou apenas Zico. Para muita gente, “Márcio Nunes” virou sinônimo de desleal, açougueiro, assassino. O inimigo numero 1 de todo flamenguista. Existem duas ironias nessa história.

A primeira é que em 1988, um outro carrinho, do vascaíno Fernando, acertou em cheio o joelho de Márcio. A cirurgia e a fisioterapia não deram jeito, e o lateral do Bangu teve que encerrar a carreira. Ele tinha 25 anos.

A outra é que Márcio sempre foi flamenguista, desde a infância pobre na zona norte do Rio. O garoto sensível passou a adolescência nas arquibancadas do Maracanã, gritando o nome do seu maior ídolo: justamente o camisa 10 do Flamengo.

Que passou a ser o seu maior inimigo após uma noite chuvosa, seis meses antes.

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Rio de Janeiro, Brasil, 11 de janeiro de 1985. Márcio Nunes via na TV a primeira noite do Rock in Rio. Pela primeira vez, grandes atrações da música mundial se apresentavam no Brasil. O promissor jogador adoraria estar vendo aquilo ao lado de sua namorada, Judite. Mas ela ligara horas antes, dizendo que precisava estudar na casa de uma amiga. 

No momento mais romântico do show do Queen, a câmera focalizou uma celebridade na primeira fila: Zico, dançando “Love of My Life” grudado a uma linda morena. Márcio gritou da sua sala: “Judite!”. E chutou violentamente e a perna da mesa.

A mesa foi operada, mas nunca mais foi a mesma.

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Rá!

 

Tá bom, essa última parte não existiu, e a Judite também não — mas todo o resto é verdade: o Brasil perdeu da França em 1986 e em 1998, Zico quebrou os dois joelhos, Márcio Nunes era flamenguista e fã do Galinho e o Queen tocou no Brasil.

Sei também que não é lá muito honesto fazer esse tipo de relação entre os fatos. Até porque a gente nunca pode ter certeza de que uma coisa resultaria em outra. Não dá pra afirmar que, se o Zico estivesse inteiro, o Brasil ganharia a Copa de 86 (só se um Márcio Nunes quebrasse o Maradona).

Mas se ele não tivesse passado pelo seu calvário, talvez mantivesse Romário na seleção de 98. E se de novo a vitória não fosse garantida, pelo menos teríamos a oportunidade de assistir numa Copa do Mundo a uma das mais brilhantes duplas de ataque de todos os tempos:

Postado por: Marcos Abrucio

2 Respostas para “Memento

  1. Um dia desses, por qualquer motivo, fui pesquisar a convocação dessa seleção de 1998. Olhando hoje, com mais calma, dá para ver que era um time com vários caras bizarros. Foi um milagre ter ganho da Holanda nas semi. Futebol é injusto às vezes.

  2. Pingback: Copawriter de Fora IV: Temos um culpado, por Antonio Nogueira « Copawriters

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