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Postado por: Marcos Abrucio

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A diferença entre o número 5100 da avenida Francisco Matarazzo e o Continente Perdido de Atlântida é que Atlântida até pode estar em algum lugar, vai saber. Já o 5100 da Francisco Matarazzo, não. Eu e um motorista da Folha de S. Paulo passamos quase três horas procurando esse endereço, embaixo de muita chuva e no meio de muito trânsito, e podemos garantir: ele não existe.

“Perdido” é uma boa palavra para me descrever naquela manhã de segunda-feira (“encharcado” e “emputecido” também são fortes concorrentes). Primeiro, claro, por eu estar preso em um carro que virou barco em um mar de bueiros entupidos na Água Branca, a Atlântida paulistana, sem conseguir achar uma maldita escolinha de futebol. Mas a verdade é que eu já estava perdido antes.

Em um dia de tráfego igualmente caótico no começo daquele ano, eu havia pego dois ônibus e um metrô para chegar à USP e trancar a faculdade de Publicidade e Propaganda. Faltava pouco para terminar. Era só entregar o Trabalho de Conclusão de Curso e pronto: eu concluiria o curso. Congelar a minha matrícula era uma forma de me manter como estudante por mais tempo e assim conseguir um estágio na área — algo tão difícil de encontrar quanto, bem, quanto o 5100 da Francisco Matarazzo. Foi o que fiz, depois de duas horas na condução e cinco minutos na secretaria da faculdade.

O resultado, porém, foi outro: o dia inteiro em casa, assistindo TV de pijamas, sem estudar e sem descolar nenhum emprego. Vendo a situação, e como último recurso antes de mandar um pé na bunda, a minha namorada na época resolveu me ajudar. Ela trabalhava na Folhinha, o suplemento infantil da Folha, e falou com a editora dela. Dias depois, a mulher me ligou:

— Não quer escrever sobre futebol de agora até a Copa?

Estávamos em 2002, ano da Copa da Coreia e do Japão. Assistir e escutar e ler notícias sobre ela era tudo que eu fazia. Claro que aceitei a proposta. Ainda mais que eu sei tudo de futebol, pensei.

Só que não sabia nada de jornalismo. Quando acordei naquela manhã de raios e trovões escandalosos, não me passou pela cabeça, por exemplo, conferir o endereço de onde seria a minha pauta, o Pequeninos do Jockey. O clube de futebol infantil era famoso por revelar craques e disputar torneios internacionais das categorias de base. Era lá que eu ouviria a expectativa dos aprendizes de jogadores para a Copa que começaria dali a três meses. Mas “lá” aonde?

Ainda demoraria alguns anos para eu ter um celular. No bolso do motorista do jornal, ilhado ao meu lado, até que tinha um, “mas só pra receber ligação!”. Depois de muito navegar, conseguimos atracar ao lado de um orelhão. Liguei para a Folha:

— Vocês me mandaram para o Pequeninos do Jockey, na altura do 5100 da avenida Francisco Matarazzo. Mas não tem nada aqui!

— Francisco Matarazzo? Ah, desculpa, era Francisco Morato. Corre pra lá que as crianças estão esperando, desligou a editora.

A avenida Professor Francisco Morato, na zona sul, ficava a mais de 11 quilômetros do orelhão onde eu estava, na zona oeste. Um oceano de distância, ainda mais aquela hora, com aquele trânsito. Levantamos as velas e partimos.

Durante o caminho inteiro, o motorista, testemunha orgulhosa de centenas de coberturas muito mais importantes, assassinatos, manifestações, guerras, invasões alienígenas, sei lá, achava tudo muito engraçado. E riu mais ainda quando chegamos ao clube, por volta do meio-dia. Atrás do campinho alagado, em um pátio apertado, estavam os rostos nada felizes das crianças que esperavam desde as oito da manhã para serem entrevistadas.

Eram cem. Cem rostos de menino olhando para mim como se eu tivesse pessoalmente roubado a sobremesa de cada um deles. Pior ainda estava o humor do coordenador da escolinha.

— Tá todo mundo esperando o repórter, disse o homem de cabelos brancos e agasalho esportivo, um Zagallo dos juvenis.

O motorista quase engasgou de tanto gargalhar:

— Vai entrevistar todos eles, garoto?

Pedi para usar o telefone da diretoria, enquanto me perguntava como conseguiria ser demitido sem ser contratado. Liguei de novo para a redação:

— Por que não pediram para selecionar uns meninos? Tem cem aqui fora me esperando. Como eu vou falar com cem meninos?

Do outro lado, ouvi uma respirada profunda. Silêncio. Depois, à queima-roupa:

— Ué, se vira.

Voltei para a chuva e encarei os garotos de braços cruzados. O motorista e o coordenador técnico já tinham virado compadres, e cochichavam algo enquanto observavam a cena. Falei o mais alto que pude:

— Pessoal! Dividam-se em grupos de dez!

A molecada devia estar acostumada a seguir esse tipo de instrução — mesmo quando ela não fazia o menor sentido, como era o caso naquele momento, ou dita por alguém sem nenhuma autoridade sobre eles, como eu. Só isso explica eles começarem a se movimentar e se juntar em pequenos grupos.

Na primeira rodinha, já percebi que os garotos eram quase todos pobres, o estereótipo do futuro jogador que, assim que se torna famoso, aparece no Faustão e chora quando vê sua história triste retratada na tela. Eram também quietos e desconfiados, característica comum a entrevistados mirins de todas as origens, como fui descobrir em pautas seguintes.

A sorte foi que o tema ajudava. Comecei perguntando para qual time cada um deles torcia. São Paulo, Corinthians? E você? E você aí do outro lado? Depois, quis saber que jogador do seu time eles gostariam que estivesse na seleção. Surgiram as primeiras risadas e provocações entre eles, e logo as declarações começaram a pingar. Fui anotando tudo no meu caderno. Estava gostando daquilo.

Meia hora depois, terminei o grupo inicial. Faltavam agora só nove rodinhas, ou mais quatro horas e meia, seguindo aquele ritmo. O coordenador se aproximou dos garotos:

— Quem já falou pode almoçar.

Aqueles meninos estavam me esperando desde de manhã sem comer. Como assim?

— Os outros não podem ir comendo também?

— Não, depois de comerem eles pegam o ônibus pra casa, esbravejou o homem, agora mais parecido com o Dunga que com o Zagallo.

A lógica do homem era absurda, como tudo naquele dia, naquele ano. Os garotos não podiam esperar mais quatro horas e meia; arranquei algumas folhas do meu caderno e distribui entre eles.

— Galera, escrevam qual deveria ser a escalação do Brasil, que jogos vocês querem ver e como vão fazer para ficarem acordados de madrugada.

Enquanto eu tentava adiantar o trabalho, chegou o fotógrafo escalado para registrar a matéria. Olhou desolado para o campo inundado. Depois, perguntou quem eram os personagens.

— Esses, apontei para o cardume de minicraques.

Ele riu baixinho. Jurei tê-lo visto trocando olhares com o motorista da Folha, que agora filava o almoço da garotada. Então chamou meia-dúzia de meninos, pediu para eles chutarem algumas bolas entre os lagos do gramado e saiu clicando. Menos de vinte minutos depois, o trabalho dele estava terminado.

O meu, ainda não. Tentei ser o mais rápido possível, mas ainda ouvindo ao menos uma palavra de cada garoto. Queria que sentissem que a espera tinha valido a pena. Ah, você quer ver os jogos da Inglaterra? Por causa do Beckham, né? Ah, vai dormir de dia e ficar acordado à noite? E a escola? Era quase três da tarde quando dispensei a última criança faminta.

O coordenador me chamou sem muita convicção para almoçar. Recusei, embora morrendo de fome. Não queria atrapalhar ainda mais a formação dos novos Ronaldinhos, Romários e Rivaldos. A chuva continuava, e o motorista roncava feito um navio no banco rebatido do carro. Cheguei em casa no começo da noite.

Mais tarde, olhei o calhamaço de páginas preenchidas pelos meninos. Juntei com as minhas anotações amolecidas de tão úmidas e vi em minhas mãos um verdadeiro dossiê sobre o que a nova geração do futebol brasileiro esperava da Copa do Mundo de 2002. Liguei mais uma vez para o jornal e perguntei quantas linhas eu poderia escrever.

— Ah, umas vinte.

O equivalente, na Folhinha, a umas duzentas palavras. Duas para cada pequenino do Jockey.

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A mensagem é o meio

Escrevo antes da final da Copa. E antes que o assunto seleção brasileira murche de vez, aqui vai uma última e breve divagação.

As reações apaixonadas aos posts contra e a favor de Dunga (de Antonio Nogueira e de Antero Neto) que propositalmente confrontamos aqui chamaram minha atenção para dois pontos, um ligado ao outro.

O primeiro é que cada texto (e seus respectivos apoiadores) se associa a uma maneira oposta de ver o futebol.

Uma visão é a de que o futebol é berço da arte, do prazer, da alegria. Para os defensores deste lado, mais importante que ganhar é encantar. E a melhor maneira de entrar para a história é jogando bonito.

Quem está deste lado provavelmente condenou o futebol pregado pelo (agora ex) treinador da seleção.

Uma visão antagônica a essa lembra que o futebol, antes de ser um espetáculo, é um esporte. E no esporte, busca-se a vitória, ora essa. Beleza? Arte? Nada: o resultado é mais importante. Como na guerra, quem entra para os livros é quem ganha.

Quem concorda com isso deve estar entre os que apoiaram o texto que livra a cara de Dunga.

Mas outra coisa chamou a minha atenção:

As seleções brasileiras das duas últimas Copas foram talhadas para agradar em cheio os defensores de cada uma dessas posições — a de 2006 era a que jogaria bonito; a de 2010, traria a vitória a qualquer custo. Só que essas seleções acabaram decepcionando até quem concordava com a visão que elas representavam.

Explico: a seleção de 2006, com seu quadrado mágico, com atletas que foram eleitos os melhores do mundo e tocavam a bola de pé em pé embalados pelo mantra “joga bonito”, deveria encantar quem apóia um futebol mais, digamos, artístico.

Só que ela acabou desapontando os defensores da poesia no futebol ao desfilar na maior parte do tempo uma performance apática, desinteressada, sem inspiração. Fosse um espetáculo, levaria tomates.

Já 2010 seria a forra de quem sempre viu no grupo anterior um bando de mercenários sem gana. Agora teríamos um técnico enérgico, que faria de tudo pelo resultado e comandaria um grupo de guerreiros, de “comprometidos” com a seleção brasileira.

Mas a guerreira e comprometida seleção de 2010 fraquejou ante à Holanda. Perdeu todo o prumo após dois gols bestas. As pernas tremeram e ninguém conseguiu fazer nada para conseguir o resultado — aquele que justificaria tudo, lembra?

As duas visões extremas sobre o futebol falharam. Então pergunto: por que não o caminho do meio?

Como em 2002, quando Felipão botou ordem na casa depois da mais acidentada campanha que o Brasil já teve nas eliminatórias.

Ele fortaleceu a defesa, botou três zagueiros e fechou os ouvidos para os pedidos por um envelhecido Romário. Mas apostou nos craques. Botou Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo para decidirem a Copa. Decidiram.

O meio, gente. Como em… 1970.

Isso mesmo, a mais brilhante seleção de todos os tempos, a que mais deu espetáculo e mais abasteceu o You Tube com lances superlativos era sim, “comprometida”.

A começar pelo começo: a delegação foi a primeira a chegar no México, para se aclimatar à altitude. A preparação foi tão perfeita que em todos os jogos a seleção sobrava no segundo tempo.

Ela tinha também muita obediência tática. Tostão sempre lembra que, quando não tinha a bola, aquele time voltava todo para marcar a saída do adversário. Solto, só ficava Pelé.

Pelé, aliás, é outro exemplo de seriedade daquele grupo. Ele já era a maior estrela do futebol mundial há uma década. Mas botou na cabeça que faria de tudo para ganhar e arrebentar na sua última Copa. Ganhou e arrebentou.

Perceba, pelos exemplos, que o meio não é sinônimo de medíocre. Pelo contrário. Evitar os extremos pode ser o caminho para ser brilhante.

Pois é. No futebol, nem sempre o melhor é jogar pelas pontas.

***

Agora escrevo logo após a final da Copa. E deu Espanha.

O time com os jogadores mais habilidosos, que nunca maltratou a bola e que ganhou tudo desde as categorias de base superou merecidamente um time pragmático e que bateu muito, na Copa toda e em especial na final.

O futebol bonito venceu o futebol de resultados?

Calma, nada é tão simples. O time do futebol-arte foi o campeão com o menor númerode gols na história das Copas. E, embora tocasse lindamente a bola, muitas vezes não tinha objetividade alguma.

E o time que não se importava com o espetáculo havia vencido todos os seus jogos desde as eliminatórias, tinha feito doze gols na Copa e contava com dois grandes jogadores, Robben e Sneijder.

Como a vida, o futebol é complicado. E, em ambos, convém não ser nem tanto lá, nem tanto cá.

(* amanhã, mais sobre a final da Copa.)

Postado por: Marcos Abrucio

O herege

Sim, eu sou. Ou vou ser, depois do que vou escrever agora. Prepare-se. Não é para estômagos fracos:

Se o Messi continuar jogando desse jeito e fizer a Argentina ser campeã, eu não vou ficar triste, não.

Pronto, já posso ir para a fogueira. Mas calma, antes de acender o fósforo, espera só um pouquinho.

Em primeiro lugar, não quero que isso aconteça. Opa, nada disso. A despeito de qualquer objeção que eu possa ter ao time de Dunga, vou, como sempre, torcer muito pelo Brasil. Aliás, só consigo torcer pelo meu time e pela seleção.

Mas tem uma coisa: não dá para ignorar os gênios do esporte. E Messi, ao que parece, está assinando a súmula para entrar nesse time.

Veja o que o cara fez na última semana. Em três jogos pelo Barcelona, ele fez oito gols. Perdão, golaços:

Lionel Messi é novo, tem só 22 anos. E está jogando melhor a cada dia: faz gols de todos os jeitos, dá assistências precisas, dribla como poucos, desmonta retrancas, é decisivo. Num dia é ponta-direita, noutro ponta-esquerda, ponta-de-lança, centroavante… Na atual fase, se ele virar goleiro, pega pênalti.

O baixote adentrou aquele nível em que não dá para torcer contra, só aplaudir. Resta saber quanto tempo ele vai ficar lá em cima. Tostão lembrou bem: Ronaldinho Gaúcho, por dois anos, esteve num ponto em que Zidane e Zico jamais chegaram. Mas depois caiu. Assim, na média, os dois Zs foram melhores.

Pela sua qualidade e juventude e por estar na ascendente, Messi parece que vai ser dos que duram. É desde já um candidato natural a Schumacher, a Phelps, a Federer, a Maradona. A Pelé? Ah, passa amanhã.

O cara é o cara.

Mas duas coisas ainda nos impedem de vaticinar a consagração de Messi no Mundial. Primeiro: com a camisa da seleção, ele nunca jogou um décimo do que joga no Camp Nou. Tudo bem, mais cedo ou mais tarde, ele vai desencantar (tomara que não contra a gente). O problema é outro: não dá, jamais, para saber com antecedência quem vai ser o craque da Copa.

Aos exemplos: em 1982, Paolo Rossi vinha de dois anos de suspensão por ter participado de um esquema de manipulação de resultados. E foi o craque da Copa, porca miséria. Em 2002, parecia que só o Felipão acreditava em Ronaldo e seus joelhos moídos. E Ronaldo foi o cara. Em 2006, Ronaldinho Gaúcho dominaria o mundo. Mal conseguiu dominar a bola.

Maledet, ops, Paolo Rossi

Pô, Argentina e Paolo Rossi no mesmo post?

O craque da Copa pode ser alguém que já é ídolo. Um Romário, um Zidane. Mas também pode ser alguém que saia do banco e vire artilheiro. Tipo o Schilatti, em 90, lembra?

Mas se este titulo cair no colo do Messi, eu vou achar bem legal. Foi mal aí.

Postado por Marcos Abrucio

O auge

Ronaldo tem uma carreira com tantas conquistas e voltas por cima que fica difícil saber qual foi o seu ponto mais alto.

Mas, com oito gols em sete jogos, dois deles na final, depois de duas contusões horrendas e de dois anos de quase total inatividade, não é absurdo dizer que o Fenômeno chegou ao seu ápice na Copa de 2002.

Denílson também. Na semi-final contra a Turquia. No segundo tempo. Para ser mais exato, nesse momento aqui de baixo.

O auge. Pronto, passou.

 

Por um breve instante (mas bota breve nisso), Denílson conseguiu chegar perto das cutículas dos pés de Maradona:

Mais um dia normal de trabalho de Don Diego.

 

Infelizmente, nem nos 25 anos que viveu antes disso nem nos 8 seguintes, Denílson conseguiu repetir isso (ok, uma vez só).

Aos 33 anos, ele continua recebendo propostas para mostrar seu talento por aí — as mais recentes, do Orlando Orfei e do Cirque du Soleil.

Postado por: Marcos Abrucio

Traumas

Sou só eu ou você também vê algo diferente nesse comercial?

Um cara pede para a seleção ir para a Copa “como quem vai para uma batalha”. Outros exigem “luta” e, em caso de derrota, uma “volta por cima”. Outro avisa: “vamos para a guerra juntos”.

São torcedores do Brasil. Sabe aquele país que sempre se orgulhou do seu “futebol-arte”, berço de craques que jogavam sorrindo e inventavam dribles desmoralizantes? O país onde muitos ainda torcem o nariz para a seleção de 94 porque ela não “ganhou bonito”? Que, aliás, acha que jogar bem é tão importante quanto ganhar? Esse mesmo.

Então o que essas frases estão fazendo na boca da galera? Pode ter certeza que não estão lá à toa. Antes de ligar a câmera para fazer um comercial, infinitas pesquisas são feitas, refeitas e refeitas. Esses gritos de guerra só foram parar no roteiro porque refletem o sentimento do torcedor brasileiro hoje. É fato. Mas o que aconteceu para, no lugar de “artistas”, querermos “guerreiros”?

Fácil: a Copa de 2006, maldita seja.

A Copa a que chegamos como favoritos e da qual saímos com o rabo (e a bola) entre as pernas. Aquela seleção será sempre lembrada como apática, preguiçosa, mascarada, sem gana. É verdade que as expectativas eram muito altas, mas é verdade também que foram muitos os nossos erros. Dos dirigentes, do técnico e dos jogadores. Mas isso é assunto para outro post, ou, pensando bem, melhor não.

2006: falta de Gana

O que eu quero dizer é que o estado de espírito do torcedor brasileiro para a próxima Copa é resultado da catatonia brasileira na Copa anterior. E que esse tipo de trauma é comum, pelo menos nessas bandas.

Em 1950, perdemos a Copa em casa, de virada, podendo empatar e levando um gol Chico Xavier faltando 10 minutos para acabar o jogo. Dureza. Primeiro, o pais inteiro ficou mudo. Depois, soltou os cachorros para todos os lados. Sobrou até para a camisa branca da seleção. Teria dado azar, a desgracenta.

Camisa branca: sai, zica.

Mas quem sofreu mesmo foram os jogadores. Em especial, olha só a merda, os negros e mulatos, como Barbosa, Juvenal e Bigode. Para a massa, faltaram a esses jogadores a raça e hombridade que sobravam nos uruguaios. Nem repararam que o capitão e fodão uruguaio Obdulio Varela também era mulato.

Na Copa seguinte, agora de amarelo, a seleção tratou de mostrar todo o seu apetite. O resultado foi uma das maiores vergonhas da história das Copas: a Batalha de Berna.

Antes do jogo contra a Hungria, os dirigentes brasileiros passaram a noite enchendo a cabeça dos jogadores. Exaltados, os cartolas exigiram honra, patriotismo e até que os jogadores vingassem as mortes dos soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. O que os húngaros tinham a ver com isso, não se sabe.

Os brasileiros entraram em campo pilhados, cheios de fibra. E com 10 minutos, já estava 2 a 0 para a Hungria. No fim, 4 a 2 para os húngaros, Nilton Santos e Humberto expulsos e um baita quebra-pau depois do apito do juiz. Jogadores, cartolas e jornalistas saíram na mão com os adversários, policiais e quem mais aparecesse na frente. Foi feio.

Batalha de Berna: fibra demais dá a maior merda

Outro trauma, enorme, foi o de 82. Para muitos, aquela seleção caiu por só querer atacar. Contra a Itália, “não soubemos jogar pelo empate”. Bem, na Copa seguinte fomos eliminados pela França justamente com um… empate. Os três zagueiros da seleção de Lazaroni em 90 também são filhos diretos das feridas causadas pelas derrotas das seleções “ofensivas” na década anterior.

Aí chegou a Copa de 94, que ganhamos com muito vigor, aplicação defensiva e um sonoro 0 x 0 na final. O grito desentalou da garganta. Finalmente éramos campeões, e agora poderíamos nos soltar (opa), desencanar dos medinhos e nos dedicarmos ao espetáculo, à arte, à diversão, ê, laiá.

É o que vemos no comercial que passava às vésperas da Copa seguinte — repare que o espírito daquela época era exatamente o contrário do de hoje: os jogadores querem se divertir, dar espetáculo (e, no fim, perdem o gol…):

Depois de 2002, com mais uma estrela no peito, esse discurso voltou: a ordem era jogar bonito, com muita alegria e malemolência:

Só que na Alemanha faltou jogar bonito, faltou alegria, faltou malemolência. Faltou ganharmos. E o diagnóstico final: faltou raça.

Mas peraí: no fim, o que nos derrubou não foi a falta de garra, e sim o excesso de talento — só que do outro lado, sob a camisa 10 do adversário.

Clap, clap, clap.

Para conseguirmos superar todos os nossos traumas em 2010, o que eu desejo mesmo é que joguemos tanto quanto esse cara. Na raça e na bola.

Postado por Marcos Abrucio.