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Os goleiros que já fui

Desde criança, sempre gostei de ser goleiro. Mas não, nunca curti apanhar de chicotinho nem levar cera quente na barriga.

Minha opção não foi fruto de masoquismo, e sim da vontade de ser protagonista de uma partida de futebol. Queria decidir o jogo, e não apenas ser mais um dentro de campo. Como minha megalomania era inversamente proporcional ao talento com a bola, não deu para ser o centroavante matador ou o meia que dá ritmo ao jogo. Restou apenas um lugar no gol, refúgio infalível dos perebas de todo o mundo.

Ser goleiro era minha chance de virar herói. Nem que para isso corresse o risco de, no primeiro frango, virar vilão. Sem contar o risco permanente de levar porradas de tudo quanto é lado.

Desde os mais longínquos recreios, passei uma infinidade de partidas embaixo das traves. E fiquei ali até há pouco mais de um ano.

Quinta à noite, quadra perto de casa. O atacante adversário invade a área. Sem antes pensar se meu plano de saúde estava em dia, caio nos pés dele. O cara corta para o lado, eu estico o braço direito. O zagueiro do meu time também se joga no lance e, no meio daquele bolo, aconteceu isso aqui:

Ouch!

Depois, isso aqui:

Arrrrgh!

E, inevitavelmente, mais isso:

Eyjafjallajoekull!

Seguido de um bom período com isso aqui:

Ô, coisa linda!

Não sei até hoje quem chutou meu dedão. Só sei que ele quebrou feito um palito de dentes. Pronto-socorro, gesso, cirurgia, seis parafusos, mais gesso, depois uma órtese sob medida, fisioterapia.

E a carreira de goleiro, interrompida. Não que o futebol tenha sentido essa perda, claro.

Mas esse afastamento dos campos e quadras me fez lembrar de todos os goleiros que eu já fui. Sim, fui. Caso você tenha pulado a infância, saiba que quando criança a gente sempre brinca que é um craque famoso. No meu caso, um guarda-metas famoso.

Não qualquer goleiro, óbvio. Goleiro bom de ser é aquele que, alem de defender muito, tem um nome bem sonoro. Por que? Simples: para, a cada defesa, podermos gritá-lo a plenos pulmões.

Aqui vai outra explicação a quem foi direto do maternal para a faculdade: durante a infância, acumulamos as funções de jogador e narrador. Não basta fazer uma grande jogada, temos que narrá-la. Isso é normal, não vá bater no seu filho se ele fizer isso.

Saiba, aliás, que foi desse jeito que o maior de todos os jogadores ganhou seu apelido. Quando pequeno, Edson gostava de pegar no gol e gritar o nome de Bilé, goleiro do time em que seu pai jogava, em Bauru. Como a criançada não entendia bem o que o menino gritava (ou a dicção do rei nunca foi muito seu forte, entende?), ele passou a ser chamado de Pelé.

Um dos primeiros goleiros que eu fui cumpria bem os requisitos citados: Harald Shumacher (ou, depois de cada defesa, Schuuuuuumaaaaaaaaaaacher!!!!) jogava muito e tinha um nome que assustava — isso muito antes do seu homônimo queixudo assombrar a F-1.

Já falei bastante do arqueiro alemão aqui — onde, aliás, escrevi o nome dele errado: é Harald, não Herald.

Herald, ops, Harald defendeu sua seleção por sete anos e em duas Copas do Mundo. Na semifinal de 1982, se destacou ao defender duas cobranças na primeira decisão por pênaltis da história das Copas. Minutos antes, com a bola ainda rolando, quase destacou a cabeça do francês  Battiston do resto do seu corpo. Hoje Schumacher é mais lembrado por esse golpe do que pelas elásticas defesas mostradas na Espanha e, quatro anos depois, no México. Coitado. Do Battiston, claro.

Schumacher é o que não está inconsciente.

Em 1986, fui outro goleiraço. Embora não ostentasse um nome assim tão poderoso, ele tinha a vantagem de jogar nos meus times, a seleção e o Corinthians. Trata-se de Caaaaaaaaaaaaaaaaaarlooooos!

Meus vizinhos ouviram tanto esse grito que devem ter se perguntado se eu tinha trocado de nome.

Carlos: nos anos 80, goleiro da seleção e do Brasil.

Desde que surgiu na Ponte Preta, Carlos era apontado como um dos melhores goleiros do Brasil. Foi reserva de Leão em 1978 e, por causa de uma lesão no cotovelo, de Waldir Peres em 1982. Na Copa seguinte, finalmente conquistou um lugar no time. E correspondeu: até a partida contra a França, ele não tinha levado nenhum gol.

Só que este jogo mostrou de maneira cruel o motivo de Carlos até hoje não ser reconhecido como deveria: o cara era azarado pra burro.

Na decisão por pênaltis, Bellone manda uma bomba na trave. Carlos acerta o canto. A bola volta do poste, bate nas suas costas e entra. Os brasileiros ainda reclamam com o árbitro, dizendo que aquilo não valia. Mas valia.

Pior que não foi a primeira vez que a asa negra do destino enchia a boca de Carlos de penas (urgh). No primeiro jogo da histórica final do Paulistão de 1977, ainda defendendo a Ponte, Carlos tenta impedir um gol do corintiano Palhinha. O atacante chuta, a bola bate em Carlos, volta no nariz de Palhinha e entra.

Depois de Carlos, incorporei outro goleiro tão bom quanto, embora, admito, menos zicado: camaronês Thomas N’Kono.

Um dos melhores jogadores africanos de todos os tempos, N’Kono chamou a atenção do mundo na Copa de 1982. Levou só um gol e acabou indo jogar na Espanha. Na Copa da Itália, em 1990, ele fez parte do time para o qual todos acabamos torcendo. O italiano Gianluigi Buffon conta que decidiu ser goleiro ao ver de perto o arqueiro de Camarões.

Mas eu gostava mesmo de N’Kono porque ele jogava com uma calça igualzinha ao moleton que eu sujava no quintal. O problema era gritar o nome dele. Aquele “n” era mudo ou pronunciado? Complicado, complicado.

Lá em casa, N’Kono virava Niiiiiiiiiikooooono.

Mas o nome que mais vezes eu urrei a cada defesa foi outro: o do arqueiro soviético Rinat Dasaeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeev!

Já metia medo logo de cara.

Durante a década de 1980, Dasaev foi eleito quatro vezes o melhor goleiro do mundo. Os soviéticos finalmente tinham encontrado um sucessor para Lev Yashin, o Aranha Negra, talvez o melhor de todos. E os brasileiros viram de perto como o cara era bão.

O Brasil estreou na Copa de 1982 contra a URSS. Os adversários saíram na frente, num frangaço de Waldir Peres (e o Carlos no banco!). E aí começou um bombardeio contra os comunistas, não de Reagan, mas de Zico, Éder, Sócrates, Falcão…

Dasaev pegou todas as bolas possíveis. Só entraram duas impossíveis, dois tirambaços de fora da área de Sócrates e Éder, já no final do jogo.

Na Copa de 86, Dasaev operou mais alguns milagres, mas de novo a União Soviética foi eliminada. Ainda participou de um jogo da Copa de 1990, mas já estava no final da carreira. Em 1991, pendurou as luvas quando defendia o Sevilla, da Espanha.

Dasaev parecia frio como Ivan Drago e, como o rival de Rocky, também era o produto de muito treinamento. Ágil, flexível, saía do gol e armava contra-ataques como poucos. Mas sua maior arma era o nome: juro que os atacantes tremiam de medo quando me ouviam gritar: Dasaeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeev (é, eu fiquei rouco muitas vezes quando criança).

Trilha sonora dessa foto: Dasaeeeeeeeeev!

Com o passar do tempo, fui outros grandes goleiros, sempre com grandes nomes: Taffareeeeeeeeeeeeeeeeel, Schmeeeeeeeeeichel, Preud’Hooooomme… Tentei representar dignamente cada um deles, mas gritando cada vez menos. É que vai ficando meio chato gritar o nome de outro cara quando você já se tornou… um cara.

Mas mesmo com os gritos guardados, continuei jogando contra os colegas da firma como se fosse uma final de Copa do Mundo. As arquibancadas estavam sempre cheias. O atacante adversário, sempre um craque. As minhas defesas, sempre milagrosas.

Passado um ano da contusão, estou liberado para voltar. Falta apenas superar o temor de enfiar de novo minha mão numa dividida.

Enquanto isso, fico me perguntando qual nome gritarei (pelo menos na minha cabeça) quando fizer a primeira defesa.

Que tal Doooooooooooooooooooooooniiiiiiiiii!!?

Not!

Uia!

Postado por Marcos Abrucio